"Índio Integrado" e "Índio Aculturado": O uso desses padrões de criminalização de lideranças indígenas pelo judiciário brasileiro/"Integrated Indian" and "Acculturated Indian": The use of these criminalization's patterns of indigenous leaders by the Brazilian judiciary.

AutorGuajajara, Sonia
  1. Introdução: a iniciativa global para abordar e prevenir a criminalização e a impunidade contra os povos indÃÂgenas

    Em abril de 2021, um relatório de pesquisa elaborado pela Articulação dos Povos IndÃÂgenas no Brasil (APIB) em parceria com o Indigenous Peoples Rights International (IPRI) foi publicado com o objetivo de contribuir com a documentação e o monitoramento de casos de criminalização e assédio de lideranças indÃÂgenas no Brasil. Realizado ao longo do ano de 2020 a partir de análises de processos judiciais, de inquéritos policiais e de realização de entrevistas com lideranças indÃÂgenas, o relatório - intitulado "Uma anatomia das práticas de silenciamento indÃÂgena: relatório sobre criminalização e assédio de lideranças indÃÂgenas no Brasil (2021)" - divulgou resultados parciais de uma campanha global evidenciando que há "um padrão de criminalização e assédio no contexto brasileiro que atuam no silenciamento dos povos indÃÂgenas ao defenderem seus direitos coletivos" e apresentou "ações efetivas e recomendações de estratégias para a proteção àvida de lideranças indÃÂgenas, familiares e, em alguns casos, de suas comunidades" (IPRI et al., 2021, p.21).

    Sabe-se que a criminalização é fenômeno conhecido de controle social institucionalizado que, orientado a evitar comportamentos tidos por desviantes e/ou indesejados, propõem-se a legitimar a imposição do poder punitivo estatal sobre determinados indivÃÂduos estrategicamente escolhidos com a intenção de silenciar lutas coletivas. É nesse contexto que a utilização de recursos do poder punitivo estatal é capaz de operar como uma seleção penalizante de lutas sociais por direitos humanos, que estão a tensionar o fortalecimento democrático. A consequência imediata, como vêm se observando, é o silenciamento de movimentos, organizações, associações e outras formas de representação coletiva social que passam a temer o encarceramento, a repressão policial, a cassação de direitos polÃÂticos, entre outras privações a direitos fundamentais.

    No Brasil, diante da tentativa de se definir um padrão de criminalização e assédio que atue no silenciamento de lideranças indÃÂgenas quando estejam a defender seus direitos coletivos, o relatório mencionado buscou resgatar premissas teóricas da criminologia, sem negar todo um conjunto de concepções elaboradas pelos indÃÂgenas entrevistados sobre o que seja "criminalizar" e "assediar judicialmente e institucionalmente". A partir da confluência de casos emblemáticos de criminalização em acompanhamento, foi verificada a reprodução de forma análoga de fatos e ocorrências, permitindo-se traçar algumas caracterÃÂsticas compartilhadas. A regularidade constatada desses aspectos foi sistematizada e, de forma conclusiva, apresentada como um padrão de práticas que atuam no silenciamento de lideranças indÃÂgenas, são capazes de caracterizar um conceito de criminalização e assédio, bem como de delinear aspectos especÃÂficos de vieses subjetivos e formais.

    Com o decurso do tempo desde a publicação do relatório, e de forma cumulativa, o constante acompanhamento da situação jurÃÂdica-penal de lideranças indÃÂgenas, sentiu-se a necessidade de aprofundar a análise de um dos padrões identificados. Cabe relembrar que o relatório, além de discorrer sobre preocupantes indÃÂcios de violação de garantias processuais, destacou o uso recorrente pelo poder judiciário de categorias discriminatórias.

    Naquele contexto, verificou-se que as categorias "ÃÂndio aculturado" ou "ÃÂndio integrado" aparecem de forma reiterada nos estudos de casos que envolviam o processamento de ações penais. É, portanto, sobre essas categorias, "ÃÂndio integrado" e do "ÃÂndio aculturado", que este estudo se detém, investigando com maior detalhamento e intensidade o seu significado e aplicação.

    Esse artigo se estrutura em duas partes. Inicia-se com a revisão de fundamentos teóricos e normativos que caracterizam a culpabilidade indÃÂgena no atual sistema penal brasileiro, demonstrando os marcos e avanços gerados nessas últimas décadas. Em seguida, contrastando com esse contexto, percorre-se o emprego das categorias em análise pelo poder judiciário. Para tanto, apresenta-se os resultados de uma pesquisa que se pauta no levantamento e análise de decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal brasileiro, permitido desvelar aspectos da mentalidade jurÃÂdica por trás da lógica punitivista. Ao final, são apresentadas conclusões tecendo aportes que venham a aprofundar a caracterização do padrão de criminalização de lideranças indÃÂgenas no Brasil, aqui definido a partir da utilização da categoria de "ÃÂndio integrado" e "ÃÂndio aculturado". Quanto àmetodologia, de viés quanti-qualitativo, a pesquisa se utiliza de revisão bibliográfica, do levantamento de jurisprudências e estudos de casos, não se excetuando o material coletado outrora em entrevistas com lideranças indÃÂgenas. (1)

    As contribuições tecidas objetivam trazer aportes para uma melhor compreensão acerca desse padrão de criminalização de lideranças indÃÂgenas no Brasil, dedicando-se a evidenciar a mentalidade judicial operante por trás dessas categorias. Como ensina Posner (2011, p.16), "alcançar uma compreensão adequada do comportamento judicial tem um interesse muito maior do que meramente acadêmico; é uma chave para a reforma do direito".

    Com isso, esse estudo intenciona contribuir com o eixo temático "Sistema criminal estatal e acesso àjustiça", do Observatório de Justiça Criminal e Povos IndÃÂgenas, atribuindo-se ênfase ao uso indiscriminado às categorias "ÃÂndio integrado" e "ÃÂndio aculturado" como uma manobra para o hiper punitivismo de indÃÂgenas no sistema penal estatal. Intenta-se, a partir desse estudo, reforçar a denúncia sobre essa prática ainda vigente, como também refletir a respeito das múltiplas facetas com que o racismo institucional opera sobre corpos indÃÂgenas que vêm atuando na defesa de direitos humanos individuais e coletivos.

  2. A culpabilidade do indÃÂgena no atual sistema penal brasileiro: das normas às alternativas teóricas diante da diferença cultural

    Diz-se que é culpável penalmente todos aqueles que sejam considerados imputáveis, que tenham potencial consciência da antijuridicidade de sua conduta e que àépoca do ato lhe era possÃÂvel exigir conduta diversa diante de determinada situação. (2)

    De forma sucinta, pode-se afirmar que a imputabilidade é caracterÃÂstica que define a aptidão que tem o indivÃÂduo de compreender que determinado fato não é lÃÂcito e de agir em conformidade com esse entendimento (JESUS, 1999; FRAGOSO, 1995). Ser imputável significa, em outras palavras, ter capacidade de compreensão e se autodeterminar. É por deter essas capacidades que indivÃÂduos podem ser responsabilizados por suas condutas, inclusive ser condenado penalmente se esse algo praticado for um ato tipificado como crime.

    Essa aptidão de reconhecer um ato como ilÃÂcito e ser capaz de atribuir responsabilidade a quem o pratica, somente é reconhecida àqueles que possuem um desenvolvimento mental completo ou uma capacidade de entender o caráter criminoso dos fatos e de responder por eles. Além daqueles com doença mental ou com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, essa capacidade não pode ser exigida daqueles considerados em menoridade penal, do completo embriagado decorrente de caso fortuito ou força maior ou daqueles em dependência ou intoxicação involuntária decorrente do consumo de drogas ilÃÂcitas. Definidos pela legislação penal como inimputáveis (art. 26, Decreto-Lei n.o 2.848/1940), (3) esses casos recaem numa das hipóteses legais de exclusão da imputabilidade previstas. (4)

    A potencial consciência da ilicitude de determinado fato, frise-se, esse conhecimento mesmo que potencial de que determinados atos são contrários ao direito estatal, é caracterÃÂstica que se exige também para configurar a culpabilidade como mencionado. Considera-se que esse potencial consciência pode ser afetada em duas situações: quando há erro inevitável sobre o elemento constitutivo do tipo (essencial ou acidental), ou um erro inevitável de proibição do fato, isto é, sobre a ilicitude do fato. (5)

    Quanto àexigibilidade de conduta diversa, o terceiro elemento da culpabilidade, relaciona-se com a real possibilidade situacional de se exigir uma conduta dentro da legalidade, restando prejudicada diante da coação moral irresistÃÂvel ou da obediência hierárquica. (6)

    A respeito da culpabilidade especÃÂfica dos indÃÂgenas no sistema penal brasileiro, o tema não é novo, mas nem por isso desprovido de confusões e perplexidades. Faz-se necessário enfatizar também que o tema é tão amplo, quanto complexo, impondo-se como uma exceção àessas premissas doutrinárias relatadas. Sua compreensão perpassa o comportamento do estado diante da diversidade cultural, deriva da aplicação conjunta de outros institutos normativos, e encontra no desenvolvimento histórico sua definição.

    Por um longo perÃÂodo da história brasileira, esteve vigente na doutrina penal a compreensão de que os indÃÂgenas eram considerados, de forma presumida, como inimputáveis. Mesmo não havendo quaisquer disposições expressas de que estariam eles classificados dentre as causas de exclusão de imputabilidade...

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