'É aí que se passa do direito à política': Deleuze e os grupos de usuários/'This is where we move from law into politics': Deleuze and user-groups.

AutorCorrêa, Murilo Duarte Costa

Introdução

A partir dos anos 2000, duas teses de Gilles Deleuze sobre o direito (1) ocuparam filósofos, juristas e pensadores polÃÂticos. O enigma que elas continuam a carregar motivou esforços para determinar sua extensão face ao pensamento de Deleuze, para reconstituir suas relações com o resto de seu sistema filosófico, e para desenvolver conceitos jusfilosóficos de inspiração deleuziana.

Seus resultados, tão diversos quanto dÃÂspares, já foram objeto de um inventário (CORRÊA, 2018) que nos dispensa de reconstruÃÂ-lo aqui e em detalhe. Bastaria esquematizar a literatura que explorou as teses de Deleuze sobre o direito apontando quatro principais direções em que ela se desenvolveu:

i) A jurisprudência como decalcomania do empÃÂrico: essa tendência analÃÂtica define o direito como uma técnica de jurisdição. Privilegiando o conceito deleuziano de jurisprudência, mobiliza as relações entre representação e expressão em um registro já institucionalizado (juÃÂzos, cortes e tribunais), e reduz o direito a práticas empÃÂricas de iuris dictio (MUSSAWIR, 2014). Advoga que a noção deleuziana de jurisprudência nada tem de subversivo em relação às práticas jurÃÂdicas institucionais dominantes, e converte a filosofia do direito de Deleuze em um argumento de legitimação da prática jurÃÂdica empÃÂrica por recusar-se a apreendê-la em qualquer dimensão transcendental ou virtual;

ii) O efeito-Deleuze na imagem do pensamento jurÃÂdico: aqui, o direito é captado como campo empÃÂrico e transcendental a ser reinterpretado por conceitos do sistema filosófico de Deleuze. Isso desencadeia uma série de releituras que visam a produzir ora um deslocamento crÃÂtico na própria Teoria do Direito (BRAIDOTTI, COLEBROOK, HANAFIN, 2009), ora uma alteração da imagem dogmática do pensamento jurÃÂdico, culminando em uma renovada teoria dos direitos e do julgamento, que se vale das noções de "encontro" e de "problema", recuperadas a intercessores de Deleuze, como Espinosa e Bergson (LEFEBVRE, 2008);

iii) Os direitos como epifenômeno do polÃÂtico: trata-se de extrações que não tratam o direito como um campo especÃÂfico, mas como um satélite do polÃÂtico. Nessa literatura, o direito aparece como cristalização da invenção de novos direitos por movimentos que agitam micropoliticamente uma dada formação social, e teriam por destino serem assimilados a uma estrutura jurÃÂdica e macropolÃÂtica preexistente, arrastados por um devir-democrático (PATTON, 2007);

iv) O direito como genuÃÂno empirismo transcendental: compreende o direito como um antÃÂpoda da lei e das práticas jurisprudenciais sociológica e institucionalmente performadas, recusando que o direito, em Deleuze, possa ser descrito como um decalque da sua prática empÃÂrica. Sem esgotá-lo em um dispositivo crÃÂtico da Teoria do Direito, ou da imagem dogmática do pensamento jurÃÂdico, descreve o direito como um conjunto de operações clÃÂnicas, uma prática construcionista e de composição de um plano de consistência formado caso a caso, por prolongamento de singularidades (SUTTER, 2009). AÃÂ, o direito se torna a prática de um empirismo transcendental e o próprio por vir da filosofia, que modula anarquicamente as relações entre o contingente e o necessário.

Por mais divergentes que essas interpretações soem, todas gravitam em torno da definição, sem dúvida capital, do direito como jurisprudência. Ao pensar a jurisprudência com maior ou menor radicalidade, essas interpretações deixam incólume aquela que talvez seja a mais potente das questões envolvidas na ideia deleuziana de direito: por que Deleuze afirma que "precisamos de grupos de usuários", e como eles seriam o ponto em que "se passa do direito àpolÃÂtica"?

Na literatura anglófona e europeia continental que se dedicou àfilosofia do direito de Deleuze, os grupos de usuários jamais são conceitualmente tematizados. Essa lacuna torna difÃÂcil compreender as relações de implicação entre direito, polÃÂtica e subjetivação, as quais podem estar mobilizadas de maneira original na noção de grupos de usuários--categoria insólita no corpus da obra deleuziana. (2)

Este ensaio se concentra e propõe desenvolver esta noção em sua singular contingência. Não se trata apenas da circunstância de sua aparição em um face a face com Negri, que pergunta sobre a relação sempre problemática entre movimentos e instituições. Nem somente da referência que Deleuze faz àjurisprudência como verdadeiramente criadora de direito (a despeito da Lei ou das leis), ou mesmo do desprezo ácido que ele dirige aos juÃÂzes. Todas essas são pistas contingentes.

O que parece fazer dos grupos de usuários um elemento indispensável àcompreensão da filosofia do direito de Deleuze é o fato de que eles são suscitados como o elemento antÃÂgeno aos juÃÂzes, "comitê de sábios", "moral e pseudocompetente", que deflagaria uma produção genuinamente jurisprudencial da jurisprudência, e assinalaria, aÃÂ, uma passagem àpolÃÂtica que ele mesmo fizera "com Maio de 68, àmedida em que tomava contato com problemas precisos [...]" (DELEUZE, 2008: 210). Filosoficamente falando, passar do direito àpolÃÂtica equivale a passar do transcendental ao empÃÂrico sem decalcá-lo--movimento que a própria obra de Deleuze realiza a partir do encontro com Félix Guattari (ROFFE, 2017; VOß, 2020).

Uma vez que a literatura secundária deixa intocados os "grupos de usuários", propomos determinar qual o seu papel na filosofia do direito de Deleuze, e por que ele pode afirmar que estes constituem o elemento de transição entre direito e polÃÂtica. Para tanto, este ensaio se desenvolve em cinco itens, que constroem progressivamente respostas a essas perguntas.

O primeiro item recupera um texto em que Paul Patton (2007)--o único a comentar a noção até aqui--caracteriza os grupos de usuários como função das democracias participativas, desenvolvendo a noção de devir-democrático, de Deleuze e Guattari (2007).

Após demonstrarmos os limites do argumento de Patton, identificamos dois preconceitos--dois resÃÂduos hilemórficos--em uma versão positivista e mais tradicional do direito. Nesse ponto, a Teoria Pura do Direito, de Kelsen, serve como material; a ontologia do comando, de Giorgio Agamben, como aliado teórico de ocasião. Sua interação sugere como essa versão tradicional do direito poderia ser subvertida a partir de uma crÃÂtica do hilemorfismo.

Isso permite colocar em novos termos o problema da gênese e do processo de individuação a partir de um importante intercessor de Deleuze: Gilbert Simondon. Assim, o terceiro item deste ensaio se dedica a explorar de que maneira a filosofia simondiana da individuação converte as questões da gênese e da individuação de um princÃÂpio em uma operação.

Com base nisso, o quarto item desenvolve em largos traços a jurisprudência como uma teoria das operações, ou como uma alagmática. Procuraremos aào que Deleuze parece ter em mente ao falar sobre um direito cuja filosofia é a jurisprudência, que se desenvolve por prolongamento de singularidades, como "situações que evoluem"; isto é, como operações de individuação em que distinções hilemórficas como matéria e forma, objeto e sujeito, perdem o sentido em proveito de uma jurisprudência experimentada como operação de transdução ou de modulação em variação contÃÂnua.

Por fim, o quinto item reproblematiza a jurisprudência, agora pensada como uma teoria das operações, posicionando-a no registro do transindividual, de Gilbert Simondon, e na teoria dos grupos de Félix Guattari. Essas duas velozes reconstruções levarão a compreender que os grupos de usuários não se confundem com associações de indivÃÂduos, ou com grupos sociais preexistentes, mas consistem na gênese casuÃÂstica e problemática de uma dimensão operativa pré- e transindividual; germes estruturais que, tornando-se agentes do direito, prolongam-se como linhas de subjetividade em relação com a estrutura que elas operam e transformam por disparação. Eis o que explicará que Deleuze não veja aàuma passagem da polÃÂtica ao direito; mas, antes, a passagem bem menos evidente, e difÃÂcil de estimar, que vai do direito àpolÃÂtica.

1 "[Precisamos] de grupos de usuários"

De toda a fortuna crÃÂtica que, nos últimos vinte anos, se dedicou ao problema do direito no pensamento de Deleuze, o teórico australiano Paul Patton foi o único que concedeu ànoção de grupos de usuários algum apreço teórico. Todos os demais referem-se a ela ao citar as entrevistas de Deleuze sem lhe conferir qualquer atenção conceitual.

Em uma palestra no Institutscolloquium des Philosophischen Instituts der Freien Universität, Patton (2007) investigava a possibilidade de deduzir da filosofia de Deleuze e Guattari as valências dúbias e contextuais que poderiam descerrar uma normatividade polÃÂtica que pudesse avaliar o caráter de acontecimentos e processos determinados (PATTON, 2007: 05) (3).

Patton reconhece que a filosofia polÃÂtica de Deleuze e Guattari "não se compromete com valores polÃÂticos e conceitos normativos que supomos dar forma às instituições básicas das democracias liberais modernas" (PATTON, 2007: 06). No entanto, afirma que Deleuze, em seus últimos escritos com Guattari, teria emitido sinais de uma "virada" polÃÂtica na direção da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT