Acesso ao crédito pelo consumidor e o agravamento do superendividamento diante da pandemia da covid-19

AutorMicaela Barros Barcelos Fernandes
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito Civil pela UERJ
Páginas87-104
ACESSO AO CRÉDITO PELO CONSUMIDOR E O
AGRAVAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO
DIANTE DA PANDEMIA DA COVID-19
Micaela Barros Barcelos Fernandes
Doutoranda em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito da Empresa e Atividades
Econômicas pela UERJ. Mestre em Direito Internacional e da Integração Econômica
pela UERJ. Pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ. Gra-
duada em Direito pela UFRJ. Advogada e professora no Rio de Janeiro. Membro das
Comissões de Direito Civil e de Direito da Concorrência da OAB – Seção RJ. E-mail:
mibbf@yahoo.com.br
Sumário: 1. Introdução. 2. Sociedade de consumo e regulação especíca: o CDC. O tratamento
insuciente do crédito e do superendividamento. 3. Superendividamento passivo e ativo. Di-
ferentes causas, diferentes soluções. O idoso e os fatores que aumentam sua vulnerabilidade.
4. Tratamento do superendividamento da pessoa natural. Desacerto na proteção excessiva do
devedor solvente e baixa do devedor insolvente. 5. O PL 3.515/2015 e as medidas preven-
tivas e de tratamento do superendividamento. 6. A interpretação proativa dos instrumentos
disponíveis no ordenamento. 7. Conclusão. 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A partir das notícias sobre a propagação do Sars-CoV-2 (coronavírus), várias provi-
dências para enfrentamento da emergência de saúde pública foram tomadas em todo o
mundo. No Brasil, elas se iniciaram com a aprovação da Lei 13.979, de 06/02/2020, que
estabeleceu, entre outras medidas, a restrição excepcional e temporária na locomoção
de pessoas para redução de contato e contaminação, ainda que resguardado o exercício
e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.
Na sequência, houve verdadeira pletora de iniciativas por órgãos públicos, tomadas
no âmbito do Executivo e do Legislativo, em diferentes instâncias, Federal, Estadual e
Municipal, o que inclusive gerou controvérsia sobre as fronteiras de competência entre
os entes estatais sob o pacto federativo.
Adicionalmente, medidas complementares às restrições impostas pelo Poder Público
foram adotadas pela iniciativa privada. Seja por medo de contágio, proteção a pessoas
de convívio pessoal e prof‌issional, ou mesmo adaptação involuntária às circunstâncias,
houve grande redução da mobilidade e do desenvolvimento de atividades, inclusive
econômicas.
Além da preocupação humanitária na área da saúde, o coronavírus impactou violen-
tamente a economia, tanto global quanto local. A crise def‌lagrada pela pandemia atingiu
em particular a sociedade brasileira, que se recuperava lentamente da mais forte recessão
da sua história. Estabelecimentos foram fechados de forma temporária ou def‌initiva em
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variados segmentos de indústria e comércio de produtos ou serviços, negócios foram
adiados ou cancelados, e obrigações antes assumidas não foram executadas.
O impacto incidiu não apenas no f‌luxo de pagamentos, causando problemas de
caixa e afetando a capacidade de cumprimento de obrigações a curto e médio prazo,
portanto de liquidez, mas na própria capacidade de produção e circulação de riquezas,
comprometida desde o começo de linhas de produção até a ponta f‌inal, no mercado con-
sumidor. Com o impacto na geração de renda, se instaurou um problema generalizado de
solvabilidade, diante do desencontro entre ativo (créditos e valores a receber) e passivo
(débitos e valores a pagar), afetando a capacidade de pagamento em qualquer prazo.
A pandemia causou, simultaneamente, um choque de oferta (pela dif‌iculdade de
obtenção de insumos em certos setores) e de demanda (pela queda brusca no consu-
mo, com repercussão em cadeia). Nenhum agente econômico, independentemente do
seu tamanho ou solidez, seria capaz de se blindar totalmente aos efeitos desta crise de
proporções inéditas1. Diante deste cenário, algumas pessoas ocupam posição particu-
larmente vulnerável. Dentre elas, aquelas já endividadas e que, perdendo suas fontes de
renda, com interrupção parcial ou total de entradas, ou aumento de gastos, passaram a
sofrer com inevitável desequilíbrio nas contas pessoais e na capacidade de exercício de
compra ou contratação.
O tema do acesso ao crédito e do superendividamento, que já era, antes mesmo da
pandemia, sensível e exigente de atenção, se agravou em complexidade e urgência no
atual cenário de crise econômica2.
2. SOCIEDADE DE CONSUMO E REGULAÇÃO ESPECÍFICA: O CDC. O
TRATAMENTO INSUFICIENTE DO CRÉDITO E DO SUPERENDIVIDAMENTO
A sociedade brasileira se funda em alguns princípios fundamentais, entre os quais,
no que tange à organização econômica, os da valorização do trabalho humano e da livre
iniciativa (artigos 1º, IV, e 170 da Constituição), que se traduz, também, na liberdade
para cada agente econômico contratar conforme sua própria autonomia, observados os
valores constantes em nosso quadro constitucional.
1. Daí a importância de regras gerais sobre como as soluções podem ser buscadas por todos os agentes. Algumas que
passam por ajuda direta do Estado, sejam através de resgates, auxílios diretos, ou autorização para adiamentos ao
cumprimento de certas obrigações, por exemplo, de ordem tributária. Outras passam por planos de restruturação
de dívidas. Daí tantas iniciativas legais de diversa abrangência. No âmbito empresarial, por exemplo, destaca-se
o projeto de alteração da Lei 11.101/2005, para ampliação do acesso a certos remédios econômicos por mais
agentes privados, além do empresário e da sociedade empresária. Em muitas situações, o que há é necessidade
de renegociação de prazos e condições. Pessoas afetadas, sejam quais forem, e em qual ponta estiverem em uma
relação de natureza econômica, devem ter meios de, no exercício de sua autonomia privada, se (re)organizar e
focar em ações que resultem em soluções concretas, e não apenas no adiamento dos problemas.
2. Entre as providências que buscaram reduzir os enormes problemas econômicos decorrentes da pandemia,
destacam-se as previstas na Medida Provisória 936, de 01/04/2020, convertida na Lei 14.020/2020 que criou o
Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, dispondo sobre relações trabalhistas e prevendo
possibilidade ao empregador de redução proporcional de jornada e de salários, bem como a suspensão temporária
do contrato de trabalho. Adicionalmente, a Medida Provisória 937, de 02/04/2020, abriu crédito extraordinário em
favor do Ministério da Cidadania, para concessão de auxílio emergencial de proteção social a pessoas em situação
de vulnerabilidade.
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