Acesso ao ensino superior: efetividade normativa das cotas socioecon

AutorBrito, Lauro Gurgel de

1 Introdução

De acordo com a narrativa oficial, ações afirmativas (1) são "medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas" (BRASIL, 1996, p. 10). Elas visam a garantir uma igualdade tanto de oportunidades quanto de tratamento a determinados grupos sociais e, com isso, compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, sejam por questões de cunho racial, étnico, socioeconômico, de gênero, entre outras formas de discriminação.

Dentro das modalidades e critérios das ações afirmativas figuram as cotas socioeconômicas, consistentes em garantir percentual de vagas a pessoas em situação de vulnerabilidade social e/ou econômica para ingresso no ensino superior, cujo critério mais frequente tem sido a vinculação do público-alvo à rede pública de ensino. Essa modalidade de ação afirmativa parte do pressuposto de que alunos e alunas que cursam ensino fundamental e médio nas escolas públicas têm, em geral, menor acesso aos conhecimentos necessários aos exames para ingresso na educação superior e, por isso, merecem um tratamento diferenciado.

O objetivo deste artigo é, então, analisar a efetividade normativa das cotas socioeconômicas, previstas na Lei Estadual do Rio Grande do Norte no 8.258, de 27 de dezembro de 2002, no âmbito da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Mossoró, e mapear experiências institucionais semelhantes. O que é feito a partir de um diálogo entre autores e análise de documentos, além do levantamento e avaliação de dados obtidos junto a instâncias oficiais. Para isso, adotamos o método dedutivo, com procedimento bibliográfico e documental, finalidade exploratória e pesquisa de natureza básica, segundo uma abordagem quantitativa.

Na primeira parte, fizemos uma revisão da literatura contemporânea sobre a temática das cotas para fins de ingresso nos cursos de graduação das universidades brasileiras, buscando sempre construir reflexões vinculadas ao contexto das ações afirmativas. Além disso, procuramos analisar as legislações pertinentes e seus respectivos marcos jurídicos-normativos no âmbito das universidades dos estados nordestinos, com exceção de Sergipe (2), para a identificação dos procedimentos adotados pelas instituições. Na segunda parte, lançamos o olhar para a Faculdade de Direito da UERN, a fim de avaliar a efetividade normativa das cotas socioeconômicas naquela unidade de ensino. Nesse caso, a estratégia metodológica principal consistiu em levantar informações junto à Diretoria de Admissão, Registro e Controle Acadêmico (DIRCA) sobre a quantidade de ingressantes e de concluintes antes e depois da lei instituidora do sistema de cotas, a fim de avaliar se, com a implementação do sistema de cotas, houve ou não alteração significativa quanto ao tempo de conclusão do curso e atendimento às expectativas geradas pela legislação que institui essas cotas.

2 Ações afirmativas e acesso ao ensino superior: doutrina, legislação aplicada e experiências

Neste tópico, apresentamos, primeiramente, uma revisão da literatura contemporânea sobre as ações afirmativas através de pesquisa bibliográfica e documental, de natureza básica, abordando, em linhas gerais, contexto histórico das ações afirmativas, definições e conceitos, natureza jurídica e enquadramento constitucional, além de analisar a sua incorporação no ordenamento jurídico brasileiro, buscando sempre relacioná-las ao contexto das instituições de ensino superior. Num segundo momento, identificamos, por meio de mapeamento quali-quantitativo, as legislações aplicadas, as experiências e os marcos jurídico-normativos das cotas no âmbito das instituições de ensino superior dos estados nordestinos.

2.1 Ações afirmativas na literatura

A discussão sobre igualdade jurídica começou após as revoluções do final do século XVIII. Nesse período, prevalecia majoritariamente o conceito jurídico de que "todos são iguais perante a lei", devido à concepção formalista, genérica e abstrata sobre a construção jurídica de igualdade. Para o contexto jurídico-liberal da época, bastaria apenas a positivação como direito fundamental para que a igualdade tivesse sua eficácia assegurada no ordenamento jurídico (GOMES, 2001, p. 130).

Entretanto, essa concepção puramente formalista não se revelou satisfatória na prática, pois ficou evidenciado que a igualdade de direitos perante a lei não era, por si só, suficiente para tornar acessíveis determinados direitos e oportunidades a pessoas socialmente desfavorecidas (DRAY, 1999). Era necessária, para tanto, uma postura afirmativa e isonômica das instituições para promoção de uma igualdade substancial, também chamada de igualdade material (3).

Na mudança de paradigma jurídico-social pós Segunda Guerra Mundial, foram elaboradas novas iniciativas e programas para evitar que a discriminação, que inegavelmente tem um fundo histórico e cultural, finde por perpetuar as iniquidades sociais, seja em questões de mercado ou, até mesmo, na regulação do acesso ao ensino superior público. Devido às reivindicações dos movimentos sociais, principalmente dos movimentos negros, os países tiveram de adotar "[...] melhorias de condições de vida da população negra, eliminando leis segregacionistas e estipulando mecanismos que pudessem, com o passar do tempo, amenizar o largo hiato socioeconômico existente entre negros e brancos" (MOEHLECKE, 2003, p. 198).

Neste contexto, surge o termo ação afirmativa que, de acordo com Moehlecke (2003), tem origem nos Estados Unidos, na década de 1960, como fruto das profundas reivindicações que aconteciam à época, quando se pleiteava igualdade de oportunidades a todos, principalmente no mercado de trabalho daquele país. Lá existiam leis de cunho segregacionista, que através da luta dos progressistas e liberais e, principalmente, dos movimentos negros, foram deixando de existir. Em resposta a essa queda das legislações de segregação, tornou-se necessária a existência de mecanismos que viessem a garantir materialmente que a igualdade alcançasse de fato a todos.

Desde então, as ações afirmativas expandiram-se para além dos Estados Unidos (4), marcando sua presença em países da América, África, Ásia e Europa, onde o termo foi intitulado de ação ou discriminação positiva. Em 1982, a ação afirmativa chegou a figurar no Programa para a Igualdade de Oportunidades, da Comunidade Econômica Europeia. Destacamos que, apesar de terem origens voltadas para um contexto racial dos Estados Unidos (5), as ações afirmativas também se estendem a outros grupos de caráter étnico, de gênero e socioeconômico em diversos países (MOEHLECKE, 2003).

No Brasil, as primeiras discussões e manifestações quanto às políticas afirmativas também são centradas nos aspectos da discriminação racial contra pessoas negras, que deram origem a uma série de reivindicações sociais, principalmente do Movimento Social Negro na década de 1990, vejamos:

[n]o Brasil, a marcha organizada pelo Movimento Social Negro, realizada em 20 de novembro de 1995 em Brasília, pela comemoração do tricentenário de Zumbi dos Palmares, reivindicava do Estado ações efetivas para a redução das desigualdades raciais. Essa era a postura da militância nos meados da década de 1990 (SANTOS, SOUZA, SASAKI, 2013, p. 547). Em decorrência das provocações desses movimentos sociais e da expansão das medidas compensatórias no mundo, o Ministério da Justiça do Brasil reconheceu a necessidade de adotar ações e políticas específicas para garantir e assegurar melhores condições no acesso aos serviços públicos à população negra e menos favorecida (BRASIL, 1996). Nesse período, iniciaram-se debates em grupos de trabalhos interministeriais com representantes da sociedade civil, que elaboraram um dos primeiros conceitos oficiais sobre ação afirmativa no Brasil, definindo-as como:

[...] medidas especiais e temporárias, tomadas pelo Estado e/ou pela iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros. (BRASIL,1996, p. 10). Entre as definições e enquadramentos jurídicos-normativos das ações afirmativas presentes no Brasil, destacamos os conceitos trazidos por Rocha (1996), Gomes (2001) e Piovesan (2005), respectivamente:

[...] é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias. (ROCHA, 1996, p. 88). As ações afirmativas se definem como políticas públicas (e privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Na sua compreensão, a igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade (GOMES, 2001, p. 132).

[...] como poderoso instrumento de inclusão social situam-se as ações afirmativas. Elas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos" (PIOVESAN, 2005...

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