Acesso aos Cargos e Empregos Públicos para Pessoas com Deficiência: Em Busca da Máxima Eficácia da Norma Constitucional e a Promoção da Diversidade no Ambiente do Trabalho

AutorLuciana Aboim Machado Gonçalves da Silva - Emerson Resende Albuquerque
Páginas70-87

Page 70

Introdução

O presente texto cientíico apresenta uma análise sobre as normas jurídicas, no âmbito interno e internacional, atinentes ao acesso a cargos e empregos públicos das pessoas com deiciência, com vistas à promoção da sua máxima efetividade e da diversidade no meio ambiente do trabalho.

A história constitucional brasileira revela que dispositivos especíicos acerca dos direitos das pessoas com deiciência somente pôde ser observado a partir da Emenda Constitucional 12/78, que representou um marco na defesa desta minoria.

A Constituição Brasileira de 1988 impõe ao Poder Público o dever de promover acesso das pessoas com deiciência a cargos e empregos públicos, mas, na prática, limita-se signiicativamente a eicácia desta norma.

Propõe-se uma leitura desse texto constitucional, por meio de interpretação "pro homine", para efetiva inserção da pessoa com deiciência em cargos e empregos públicos, rompendo deinitivamente com uma cultura e prática que inibem a construção emancipatória dos direitos humanos, de modo a alcançar uma sociedade mais justa, democrática e igualitária.

Nessa mira, este estudo inicia-se com a abordagem do processo de internacionalização de reconhecimento dos direitos da pessoa com deiciência para em seguida tratar especiicamente do direito humano e fundamental ao acesso aos cargos e empregos públicos da pessoa com deiciência em igualdade de condições, passando pela análise no plano de normas internacionais e legislações estrangeiras para, por im, destacar o sistema jurídico brasileiro, em uma perspectiva que enseja sua eicácia jurídica e social e enfrenta os principais obstáculos dessa espécie de minoria.

Page 71

1. O processo de internacionalização do reconhecimento dos direitos humanos da pessoa com deiciência

Com o im da II Guerra Mundial e com a relexão sobre o holocausto,1 surge um movimento de internacionalização dos direitos humanos, ediicado na dignidade da pessoa humana, com reaproximação entre ética e direito e valorização dos princípios. Como lembra Flávia Piovesan (2013. p. 190):

No momento em que os seres humanos se tornam supérluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo signiicou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do direito. Diante dessa ruptura, emerge a necessidade de reconstruir os direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral.

Nessa linha, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, superando a dicotomia entre liberalismo e socialismo e preconizando a igualdade, estabelece que todos "são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação" (art. VII).

No mesmo sentido, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, consagrando o "direito ao trabalho, que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito" (art. 6º, 1), bem como a garantia de que "os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, (…) ou qualquer outra situação" (art. 2º, 2). O Pacto estabeleceu também o "direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis" (art. 7º, caput), que assegurem especialmente "igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo de trabalho e capacidade" (art. 7º, "c").

Na mesma linha, o Protocolo de San Salvador de 1988 (Protocolo Adicional ao Pacto de San Jose da Costa Rica de 1969) em seus arts. 3º, 6º e 7º.

Também a Organização Internacional do Trabalho - OIT, adotando rígida política de combate à discriminação e promoção da igualdade, aprovou a Convenção n. 111 de 19582, que trata de discriminação em matéria de emprego, com vigência no Brasil desde 1966, comprometeu-se a formular e aplicar uma política nacional que tenha por im promover, por métodos adequados às circunstâncias e aos usos nacionais, a igualdade de oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e proissão, com o objetivo de eliminar toda discriminação nessa matéria, inclusive com ações airmativas.

A partir de então, seguiu-se um processo de especiicação dos direitos humanos em defesa dos grupos vulneráveis. Destarte, a conscientização individual e social da diversidade - característica essencial da humanidade que a torna mais completa - passou a ser promovida em busca de uma sociedade democrática, plural e aberta.

Conforme enfatiza Norberto Bobbio (1992. p. 69), "(...) o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especiicidade ou na concentricidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, doente, etc".

Surgem, então, normas internacionais tratando especiicamente de determinados grupos vulneráveis, dentre os quais o das pessoas com deiciência. Nesse contexto, em 9 de dezembro de 1975, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deiciência objetivando assegurar que tal declaração fosse utilizada como base comum de referência para proteção dos direitos das pessoas com deiciência e fossem garantidos os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos, para desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível.3

Page 72

Por sua vez, em 16 de dezembro de 1976, a Assembleia das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 31/123, declarando o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deicientes, com o objetivo de conclamar os países, seus governantes, a sociedade e as próprias pessoas com deiciência, a tomar consciência e providências para garantir a prevenção da deiciência, o desenvolvimento das habilidades, a reabilitação, a acessibilidade, a igualdade de condições, a participação plena e a mudança de valores sociais.

Mais adiante, em 3 de dezembro de 1982, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 37/52, adotando o Programa Mundial de Ação relativo a Pessoas com Deiciência; bem como a Resolução 37/53, proclamando o período de 1983-1992 como a Década das Nações Unidas para com as Pessoas com Deiciência.

Seguindo essa tendência, no escopo de implementar a diversidade no meio ambiente do trabalho, em 1º de junho de 1983, a Organização Internacional do Trabalho - OIT aprovou a Convenção n. 159 da OIT, ratiicada pelo Brasil, que prevê a aplicação de política nacional sobre reabilitação proissional e emprego de pessoas deicientes, com a inalidade de assegurar oportunidades de emprego no mercado de trabalho, inclusive com ações airmativas e com a participação da sociedade civil.

Já em 14 de dezembro de 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 45/91, propondo a execução do Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deiciência e da Década das Pessoas com Deiciência das Nações Unidas.

Nos anos seguintes, vários países como a Alemanha, o Canadá e a França incluíram em seus ordenamentos jurídicos leis garantindo medidas de proteção especial ao trabalhador portador de deiciência, incluindo ações airmativas, estabelecendo reservas e preferências, para possibilitar o acesso desses grupos ao exercício de seus direitos humanos.

Ainda no início da década de 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de dezembro de 1993, aprovou a Resolução n. 48/96, disciplinando regras gerais sobre igualdade de oportunidades para pessoas com deiciência.4

Em 1999, foi aprovada a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deiciência - ratiicada e promulgada pelo Brasil por meio do Decreto n. 3.956, de 8 de outubro de 2001 - em que estabelece o compromisso de adotar medidas de caráter legislativo, social, educacional, trabalhista, ou de qualquer outra natureza, que sejam necessárias para eliminar a discriminação contra as pessoas com deiciência e proporcionar a sua plena integração à sociedade.

Por im, em 30 de março de 2007, a Assembleia das Nações Unidas aprovou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deiciência e o seu Protocolo Facultativo, tendo entrado em vigor no Brasil por meio do Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, com status de norma constitucional, por força do § 3º no art. 5º da Constituição Federal. A aludida convenção vem provocando uma verdadeira revolução na legislação de diversos países. Segundo a OIT:

191. A entrada em vigor da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deiciência, em 2008, representou um progresso importante em termos de legislação sobre deiciência. Nos últimos anos, países como Moçambique e a República do Cazaquistão adoptaram ou alteraram a sua legislação de trabalho, que prevê agora medidas destinadas às pessoas com deiciência. Em 2007, a República da Coreia e o Chile aprovaram legislação sobre pessoas com deiciência, que proíbe a sua discriminação. Outros países, como a Tailândia (2007), a Jordânia (2007), a Espanha (2007), a Etiópia, a Malásia (2008), o Camboja (2009) e o Vietnam...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT