Medidas Preventivas em Face do Assédio Moral: Instrumentos de Prevenção Diante da Dificuldade de Categorização desse Processo Organizacional

AutorLanaira da Silva - Mário Lúcio Garcez Calil
Páginas62-69

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Introdução

I ndubitavelmente, o trabalho coloca-se como uma estrutura central na formação da identidade do indivíduo; apesar dos diferentes sentidos assumidos ao longo da história, atualmente o trabalho deve signiicar dignidade. É no trabalho onde há a airmação das habilidades, competências, realização de projetos. É por meio do trabalho que há uma espécie de mediação fundamental na inserção social. É ainda possível dizer que trabalhar é inserir-se no ethos social. Desse modo, é por meio desse ambiente de trabalho que é possível reconhecer e aprender sobre o "outro", ocasião em que há a possibilidade do desenvolvimento da inteligência emocional do indivíduo ao poder reconhecer e compor as diferenças.

Contudo, impossível falar desse universo do trabalho, sem referenciar o "assédio moral"- assunto amplamente discutido na esfera jurídica. Apesar das diversas discussões, ainda não se encontrou um break-even que possa dar parâmetros mais concretos para a prevenção dessa prática.

Em um primeiro plano, majoritariamente de forma ampla, entende-se o "assédio moral" como um fenômeno jurídico em que condutas assíduas perpetram-se por meio de abusos (físicos e/ou psíquicos) no ambiente de trabalho. No presente artigo, ainda será demonstrada a outra interface do assédio moral, isto é, seu desenvolvimento como um processo organizacional e as possibilidades de se pensar mais concretamente a aplicação de medidas de prevenção dessas práticas, uma vez que o sofrimento é tão intenso que, para muitas pessoas, certas situações vivenciadas no contexto de trabalho podem ser extremamente traumáticas.

Por volta de 1980, o psicólogo sueco Heinz Leymann foi o primeiro a identiicar e delinear mais apropriadamente o assédio moral, ao apresentar resultados cientíicos, delimitar e distinguir de demais abusos (sexuais, preconceitos etc.), autonomizando as práticas com a descrição de características especíicas, desenvolvimento, e a tipiicação de causas e consequências.

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No Brasil, em 2001, houve uma ampliação das discussões com os avanços de Maria Ester de Freitas e suas pesquisas no campo da cultura organizacional na esfera administrativa e também da obra de Marie-France Hirigoyen. Nesse contexto, ela demonstra os ciclos de perversidade, controle e submissão das relações familiares e de trabalho. Logo após, pesquisadores da área da Psicologia, Administração, Medicina e Sociologia, destacando-se pioneiramente as pesquisas de Roberto Heloani e Margarida Barreto, sendo a primeira dissertação feita por Margarida Barreto.

De todo modo, ainda não há, em virtude da interdisciplinaridade dessa questão, uma consistência teórica nas discussões. Contudo, apesar da imensa quantidade de estudos, não se pretende aqui esgotar o assunto, mas apresentar possíveis parâmetros no intuito de delimitar o assédio moral como um processo organizacional e apontar eventuais medidas de prevenção.

1. Relevância do aprofundamento do estudo das categorias do assédio moral

O conceito de assédio moral articula-se, inserido em uma perspectiva mais ampla, no contexto da violência. Nesse sentido, as discussões sobre a violência surgem imperativas na (pós) modernidade tanto no âmbito do senso comum quanto em debates acadêmicos. Agamben (2002) demonstra a exposição de uma violência nunca antes presenciada, ocultada principalmente por meio de sua banalização. Minayo e Souza airmam: o fenômeno da violência [...] é produto da história [...] não se pode deixar de reconhecer que os processos violentos inibem, modiicam e enfraquecem tanto a qualidade como a capacidade de vida. Vários estudiosos da atualidade observam que se torna cada vez mais necessária uma epidemiologia da violência, inclusive uma epidemiologia dos problemas psiquiátricos gerados por ela (MINAYO e SOUZA, 1998. p. 521).

Assim, de outro modo não se pode dizer que os estudos acerca dos processos que se denominam "assédio moral" originam-se imbricados em fenômenos mais complexos, em que se demonstra a elevada instrumentalização intrínseca a esses processos - indivíduos descartavelmente utilizados como meio de garantir que os ins sejam alcançados, ou simplesmente reletem as mazelas da precarização do meio ambiente de trabalho.

Em seu artigo "O homem do século XXI: sujeito autônomo ou indivíduo descartável", Eugène Enriquez (2006. p. 3) delineia, ainda que trágico-ludicamente, certas perspectivas acerca das ambiguidades advindas dos processos de modernização que culminaram na historicidade do sujeito, aprofundando sua análise, ao brevemente explorar, pautado em seus trabalhos de ponte entre psicanálise e sociologia, os conceitos de "sujeito de direito", "sujeito psíquico" e "sujeito moral". Para ele: é o direito que funda a liberdade real dos homens, como pensava Rousseau. Sem o direito, cada um estaria à mercê do arbítrio do tirano, do Estado, da casta ou da classe. Mas não se trata apenas de usufruir o direito. Ser um sujeito de direito signiica, igualmente, assumir-se como um ator no estabelecimento das leis (seja diretamente, seja por intermédio de representantes) e agir ativamente para fundar e refundar a lei e para fornecer ao âmbito legal, assim formado, as suas fontes de legitimação (ENRIQUEZ, 2006. p. 3).

Desse modo, para ele, o sujeito de direito constrói-se por meio do debate contínuo contra as formas de dominação. Após discorrer sobre o "sujeito de direito", propõe o conceito de "sujeito psíquico". Por meio da psicanálise, evidencia o descobrimento do inconsciente, reconhecendo, sobretudo uma atividade psíquica intensa que está além de uma racionalidade convencional (das faculdades cognitivas), demonstrando um espaço em que se dão as pulsões, os sentimentos, os desejos, bem como os recalques e projeções.

Para Eugène Enriquez, o reconhecimento como sujeito psíquico advém do respeito em seu íntimo, no pensar, na sua atividade de sublimação, da proteção das "mortes psíquicas". Nesse reconhecimento, há também a percepção da defesa de uma fantasia da dominação total, ao se notar a clivagem do indivíduo, submetido à perda, à falta, ao sofrimento etc. Contudo, emergem-se três problemas fundamentais: a) o reino do dinheiro, tornado um fetiche sagrado; b) o aumento do poder do Estado; c) um "retorno" identitário ao grupo a que se pertence, e crença nos seus fundamentos (ENRIQUEZ, 2006, p. 6).1

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Nesse contexto é que o aprofundamento da discussão sobre o assédio moral faz-se mais profícuo, uma vez que não se limita ao maniqueísmo convencional do senso comum acerca da temática. Importante, sem dúvida, a ampliação do debate com o auxílio das demais ciências para que a categorização dos processos não ocorra supericialmente, isto é, de um ponto de vista exclusivamente normativo. Dentro dessa perspectiva, as formas de disciplina soisticadamente apresentam-se como uma modalidade de exercício de poder, que adota procedimentos, instrumentos e técnicas em diferentes níveis de aplicação (FOUCAULT, 1997. p. 65-66).

Além dos artifícios psicológicos já citados, há também outra forma: submetê-lo ao ostracismo, ao isolamento, privá-lo de participar de qualquer reunião, silenciá-lo, evitar que ele tenha contato com os demais. Um oposto dessa prática, pelo contrário, é submeter o empregado a muitas informações, muitos estímulos sem dar subsídios e capacidade para a resolução das questões propostas. Dentre outras práticas abusivas, enquadra-se também a violência e controle contra o corpo físico. Ex: Impedir o emprego de urinar (ou sancioná-lo por isso), privar de alimentação ou bebida, impedir de dormir quando precisa descanso, impor uma determinada posição corporal.2

Todas essas imposições/controle sobre o corpo possuem como intuito humilhar, demonstrar a impotência do empegado perante seu empregador. Após...

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