Da Transfobia nas Relações de Trabalho: Do Reconhecimento Identitário e dos Meios de Efetivação da Dignidade das Travestis e das Pessoas Transexuais no Ambiente Laboral

AutorValéria Silva Galdino Cardin - Francielle Lopes Rocha
Páginas88-96

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Introdução

Os padrões comportamentais heterocisnormativos imprimem nos corpos marcas identitárias atribuindo à genitália do sujeito expectativas comportamentais binárias de feminilidade e masculinidade.

Aos corpos, feminino e masculino, são naturalizados arquétipos de comportamento supostamente inerentes à natureza de fêmeas e machos. Tais marcas, assim, são inscritas nesses corpos, conferindo a feminilidade ao sujeito que porta o órgão sexual feminino e a masculinidade ao sujeito que porta o órgão sexual masculino, como se os traços identitários das pessoas encontrassem limites em sua isiologia.

Ocorre, no entanto, que nem todas as pessoas se identiicam e podem ser enquadradas nos padrões binários de comportamento.

As pessoas transgênero, por exemplo, demostram que a anatomia do ser humano não é fator determinante para inscrevê-lo nas categorias feminina ou masculina.

Desta feita, os sujeitos que vivenciam a sua experiência identitária rompendo com os padrões binários hetero-cisnormativos são marginalizados e excluídos dos espaços públicos.

As travestis e as pessoas transexuais, vítimas da transfobia nas mais diversas esferas da vida social, têm diariamente os seus direitos fundamentais aviltados, pois são submetidas às mais variadas espécies de violência, quer seja no âmbito familiar, educacional ou nas relações de trabalho.

Grande parte dessas pessoas que ousa romper com o modelo binário e hegemônico não conta com o apoio familiar, razão pela qual são expulsas de suas casas e não conseguem concluir os estudos.

Por conseguinte, as pessoas transgênero não logram a capacitação necessária para ingressar no mercado formal de trabalho, e quando o fazem, são, mais uma vez, vitimadas pela falta de preparo das corporações, que não possuem

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políticas organizacionais eicientes para contemplar as suas especiicidades, bem como para combater o preconceito, a intolerância e as práticas discriminatórias perpetradas pelos demais colegas.

Assim, mesmo que a atual Constituição Federal apresente em seu bojo o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo uma cláusula geral dos direitos da personalidade, airma-se que os padrões heterocêntricos e cisnormativos - que pretendem atribuir aos corpos feminino e masculino a feminilidade e a masculinidade como se, necessariamente, lhes fossem inerentes - violam não só inúmeros direitos personalíssimos, mas também, o próprio princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

A partir de tal relexão, pretende-se, utilizando-se do método teórico, desenvolver uma análise das barreiras que as pessoas trans são compelidas a enfrentar quando ingressam no mercado formal de trabalho, bem como apontar para a necessidade de as corporações adotarem políticas inclusivas para garantir a permanência dessas pessoas, bem como para promover um ambiente laboral saudável e inclusivo, livre de qualquer manifestação odiosa de preconceito ou intolerância.

1. Do sexo, gênero e identidade de gênero

Antes de adentrar ao tema da pesquisa, propriamente dito, faz-se necessário estabelecer distinções entre os conceitos de sexo, de gênero, e de identidade de gênero, para que, assim, se explicite a complexidade das vivências humanas, bem como a multiplicidade identitária que permeia o corpo social, afastando-se, por conseguinte, qualquer abordagem discriminatória acerca da temática.

Em primeira análise, aparenta-se que o corpo e seus traços identitários não podem ser dissociados da genitália que nele se inscreve, no entanto, tal assertiva não corresponde à pluralidade das relações humanas e não pode ser considerada verdadeira, tampouco absoluta.

O sexo, segundo Elimar Szaniawiski, pode ser deinido como "um conjunto de características que distinguem o macho da fêmea" (SZANIAWISKI, 1988:47), constituindo-se, ainda, como um dos caracteres primários de identiicação da pessoa.

Segundo os padrões hetero-cisnormativos, o sexo do sujeito é carregado de signiicados simbólicos e torna-se fator categórico na determinação das práticas sociais e afetivas do sujeito, sendo que o ideal normativo construído histórica e culturalmente se inscreve na igura do homem, branco, heterossexual e cisgênero (LOURO, 2010:25).

Infere-se, portanto, que a percepção do sexo biológico é instituída por uma série de determinações sociais que atribuem a feminilidade à mulher e a masculinidade ao homem, sendo que aqueles que não se submetem ao referido padrão, como as travestis e as pessoas transexuais, são remetidos à margem do constructo social (LOURO, 2010:26).

Airma-se que os aspectos biológicos inscritos em dados anatômicos não correspondem à representação social do sexo, surgindo, portanto, a percepção do gênero no intuito de afastar a ideia de que a genitália do sujeito seria fator determinante na construção identitária e comportamental do ser.

Para Joan Scott, o gênero é um "elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos" (SCOTT).

O gênero designa que a construção do feminino e do masculino não se operam por força de aspectos biológicos, mas, sim, culturais.

Acerca do tema, Maria Lygia Quartim de Moraes disserta:

A expressão relações de gênero, tal como vem sido utilizada no campo das ciências sociais, designa, primordialmente, a perspectiva culturalista em que as categorias diferenciais de sexo não implicam no reconhecimento de uma essência masculina ou feminina, de caráter abstrato e universal, mas, diferentemente, apontam para a ordem cultural como modeladora de mulheres e homens. Em outras palavras, o que chamamos de homem e mulher não é o produto da sexualidade biológica, mas sim de relações sociais baseadas em distintas estruturas de poder (MORAES, 1998).

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Atribui-se, assim, ao sexo biológico características estritamente anatômicas, enquanto o gênero compreende a construção social, histórica e cultural que confere a feminilidade e a masculinidade aos corpos.

Emilce Bleichmar airma que:

Sob o substantivo gênero se agrupam todos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminilidade/ masculinidade, reservando-se sexo para os componentes biológicos, anatômicos e para designar o intercâmbio sexual propriamente. A clivagem efetuada na profundeza dos conceitos reduz o papel do instintivo, do herdado, em favor do caráter signiicante que as marcas da anatomia sexual adquirem para o homem através das crenças de nossa cultura (BLEICHMAR, 1988:33).

Por sua vez, a identidade de gênero deve ser compreendida como o modo pelo qual o sujeito percebe a si mesmo enquanto pertencente à categoria do gênero feminino ou masculino, importando, portanto, em uma sensação subjetiva de si que pode ou não corresponder ao gênero que lhe foi conferido socialmente em razão de sua genitália.

Segundo os princípios de Yogyakarta, identidade de gênero é:

A profundidade sentida, experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluído o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modiicações da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos (YOGYAKARTA).

Tereza Rodrigues Vieira conceitua a identidade de gênero como sendo a vivência interna do gênero, tal qual é a sensação profunda do sujeito, sendo, portanto, a consciência de pertencimento à categoria do gênero feminino ou masculino (VIEIRA, 2012:39).

Infere-se, portanto, que os traços biológicos não são fatores que determinam a subjetividade do indivíduo, tampouco a sua percepção de pertencimento...

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