O acesso da pessoa nos tribunais internacionais: aspectos políticos

AutorMargareth Anne Leister
CargoDoutora pela Universidade de São Paulo. Professora do programa de Pós-graduação da UNIMES. Professora da PUC/SP. Professora do Programa de Pós-graduação do UNIFIEO

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Recebido em 11|12|2006 Aprovado em 15|12|2006

La realidad no es una línea recta sino un sistema de bifurcaciones

Tomás Eloy Martínez

1 Introdução

Este artigo tratará de questões acerca do acesso de indivíduos nas jurisdições internacionais em matéria de direitos humanos, as normas aplicáveis, a regulação internacional e suas instituições. Destacaremos o surgimento de novas fórmulas institucionais que não as intergovernamentais e sua natureza executiva e legislativa.

Verificaremos, ainda, a compatibilidade entre os sistemas democráticos e esta nova regulação, bem como o exercício da democracia nestas instituições.

Outra questão que se coloca é: poderá um Estado aceitar a jurisdição internacional e aderir incondicionalmente às regras liberalizantes do Direito Internacional atual, com notável redução da soberania do Estado?

2 Conceito de soberania

O direito integra a estrutura social que, sob o prisma pós-moderno, é visto como um sistema aberto, que admite interação com elementos externos. No sistema de direito internacional observamos que o conjunto é dinâmico e sem qualquer ponto de equilíbrio, dada a natureza de seu principal ator: o Estado.

Bodin estabelece a natureza do Estado, sua finalidade, seu fundamento, a cidadania, e as formas possíveis que possa assumir, nos livros I e II do Les six livres de la République. Afirma que todo poder vem de Deus e o cidadão é governado independentemente do seu consentimento, aquele que recebe de Deus a potência soberana é também a imagem de Deus na terra, pois se o soberano é absoluto em relação ao súdito, não o é em relação a Deus.

A soberania é definida por Bodin como o poder absoluto, perpétuo e indivisível que o chefe de Estado tem de fazer leis para todo o país, sem estar, entretanto, sujeito a elas nem às de seus predecessores, porque não pode dar ordens a si mesmo. O vocábulo soberania deriva de superanus, que significa estar por cima. A expressão "Estado soberano" remete, desde logo, à idéia de uma ordem estatal não submetida a outra ordem da mesma espécie. Logo, Estado soberano seria aquele que não se encontra numa situação de dependência - jurídica ou de outra ordem - em relação a outro Estado.

Com a Revolução Francesa de 1789, consolidou-se a doutrina da soberania nacional, segundo a qual a soberania não pertence a cada indivíduo e sim à nação, depositária única e exclusiva da autoridade soberana. Daí os conceitos de raison d´etat e da doutrina da realpolitik.

Do conceito de soberania formulado por Jean Bodin em 1576 ("poder absoluto e perpétuo de uma República") ao de soberania relativa, presenciamos a institucionalização da jurisdição internacional.

3 Jurisdição e territorialidade

Jurisdição é um conceito que se situa entre o Direito Internacional e o Direito Interno e cujo estudo deve levar em consideração ambos os aspectos. A doutrina da jurisdição teve sua origem no conflito de leis, começou a ser discutida no século XVII e recebeu sua forma final no século XIX. O Direito Romano não continha nenhuma regra sobre o alcance da jurisdição, embora o fato de que as leis só atingissem os súditos do Império

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servisse como exemplo de negação do controle único da "lex fori", o que significa que a legislação aplicava-se apenas aos seus cidadãos, mas não necessariamente aos estrangeiros. Esta distinção foi melhor desenvolvida por Bartolo1, que formulou duas questões indicativas: (i) tem a lei validade fora de seu território para os estrangeiros?; (ii) os efeitos da lei se estendem fora do território do legislador? Estas questões até hoje não foram plenamente respondidas, pois a extensão em que a legislação tem efeitos fora de seu território ainda é um problema fundamental. Podemos afirmar que na dimensão interestatal vigora o princípio do par in parem non habet judicium, formulado por Bartolo.

Os temas apontados por Bartolo levaram a inúmeras questões formuladas por doutrinadores. Ulricus Huber, jurista holandês, estabeleceu 3 axiomas: (i) a lei de qualquer autoridade soberana tem força dentro dos limites de seu Estado, obrigando a todos a ele sujeitos, mas não se estendendo além das fronteiras; (ii) aqueles que estão dentro das fronteiras de um Estado são considerados sujeitos a uma autoridade soberana, estejam lá temporariamente ou não; (iii) aqueles que exercem autoridade soberana agem em virtude do reconhe-cimento entre as nações que suas leis, sendo aplicáveis dentro do território, devem manter seus efeitos em qualquer lugar, enquanto não prejudiquem os poderes ou direitos de outras nações ou de indivíduos. Este entendimento decorre da conveniência e do consentimento tácito das nações (comity).

Assim, o direito estrangeiro pode ser aplicado, embora as leis de um país não possam ter efeito direto em outro Estado, em conseqüência do consentimento do poder supremo do Estado. Os princípios de Huber foram aceitos durante o século XVIII, em virtude de estarem baseados em longo desenvolvimento histórico.

A essência deste entendimento está contida em decisão de 1824, proferida pelo Juiz Story, da Suprema Corte americana, na qual consta que as leis de nenhuma nação poderiam se estender além dos limites do próprio território, exceto no que diz respeito aos seus próprios cidadãos. As leis de um Estado podem ter força para controlar a soberania ou os direitos de qualquer outra nação dentro de sua própria jurisdição. O próprio Story, na qualidade de professor de Harvard, reafirmou, dez anos após, o que antes havia pronunciado como magistrado, classificando como máximas gerais da filosofia do Direito Internacional: (i) como toda nação possui soberania exclusiva e jurisdição dentro do seu território, as leis de cada Estado vinculam diretamente todos os bens, reais ou pessoais, localizados dentro do território, e todas as pessoas que habitam naquele território, sejam lá nascidas ou estrangeiras, assim como qualquer contrato celebrado, ou ato praticado naquele território; (ii) nenhum Estado pode com suas leis atingir diretamente ou vincular propriedades fora de seu território, ou vincular pessoas não residentes, com exceção da possibilidade de qualquer nação vincular seus cidadãos com suas leis em qualquer lugar onde estejam. Estas máximas foram posteriormente reconhecidas como a "teoria territorial da jurisdição" - ainda que se estenda a jurisdição a cidadãos não residentes no território, desfigurando o elemento territorial.

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Mas o aspecto de territorialidade está presente, pois, como o próprio Story afirmou, a jurisdição do Estado sobre os seus cidadãos que não residam no seu território só pode ser exercida dentro do território do próprio Estado, e não no território do país de residência daquele cidadão. Ainda que a concepção de territorialidade vinculada ao Estado soberano tenha surgido apenas no século XVII e se fortalecido no século XVIII, atualmente inexiste pedaço de terra sobre o qual não se afirme a jurisdição territorial absoluta por parte de um ou mais entes políticos.

As máximas de Story foram imediata e universalmente aceitas, e até hoje influenciam a doutrina da jurisdição internacional. Desde então, quase todos os doutrinadores apóiam-se em Huber e Story. Em 1855, Henry Wheaton reformulou os princípios de Story, afirmando que todo Estado independente tem o direito ao poder exclusivo de legislar, com relação aos direitos pessoais, status e condições de seus cidadãos e todos os bens situados dentro do território, pertencendo ou não aos seus cidadãos.

A doutrina territorial divide o mundo em compartimentos, dentro de cada qual um soberano tem jurisdição. O princípio da jurisdição territorial deve ser reconsiderado por razões práticas e não por questões doutrinárias. Isto em função de situações não previstas pelos autores e que...

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