Para além das disputas identitárias: uma análise crítica da Agenda 2030 da ONU e da política criminal contra a violência de gênero no Brasil

AutorClara Maria Roman Borges, Leonardo Cabral
CargoMestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD-UFPR). Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max Planck ? Institute für Europäische Rechtsgeschichte (2019). E-mail: romanborges@uol.com.br. / Bacharel...
Páginas43-86
Para além das disputas identitárias: uma
análise crítica da Agenda 2030 da ONU e
da política criminal contra a violência de
gênero no Brasil1
Beyond identity conicts: a critical analysis of the UN 2030
agenda and the criminal justice responses to gender-based
violence in Brazil
Clara Maria Roman Borges*
Universidade Federal do Paraná – PR, Brasil
Leonardo Cabral**
Universidade Federal do Paraná – PR, Brasil
1. Introdução
A violência de gênero é, atualmente, uma das mais repercutidas formas
de violações aos direitos humanos e ocorre, em maior ou menor grau, em
todo o mundo, nas mais variadas culturas, classes sociais, etnias e locali-
dades. É, também, um ponto de intersecção entre o campo dos direitos
humanos – violados pela prática dessa violência – e das ciências criminais,
podendo ser estudada, por exemplo, através da criminologia, do direito
1 Parte substancial da pesquisa apresentada no presente artigo foi desenvolvida no âmbito de
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), com financiamento do Tesouro
Nacional.
* Mestre e Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Paraná (PPGD-UFPR). Professora Associada do Departamento de Direito Penal e Processual
Penal da UFPR. Professora do PPGD-UFPR. Pesquisadora convidada do Max Planck – Institute
für Europäische Rechtsgeschichte (2019). E-mail: romanborges@uol.com.br.
** Bacharel em Direito, com ênfase em Direito do Estado, e mestrando em Direitos Humanos e
Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especializando em Direito Penal e
Processual Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. E-mail: leonardocabral97
@gmail.com.
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penal ou do processo penal. A aposta no Sistema de Justiça Criminal para a
proteção de grupos vulneráveis, como mulheres, LGBTs, população negra
e outros, é visível e crescente no Brasil, resultando em uma tendência de
judicialização das relações sociais já observada por diversas estudiosas.
Como expressões significativas do engajamento pela tutela penal dos
direitos fundamentais das vítimas de violência de gênero, tem-se a Lei
11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que trata da violência
doméstica e familiar contra a mulher; a Lei nº 13.104/2015, que alterou
o Código Penal para qualificar e tornar crime hediondo o assassinato de
mulheres por “razões de condição do sexo feminino”; e, recentemente, o
julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de In-
constitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e do Mandado de Injunção
(MI) nº 4.733, que reconheceu ter havido omissão do Congresso Nacional
ao não editar norma criminalizadora dos atos de homofobia/transfobia e
decidiu pelo seu enquadramento nos tipos penais da Lei nº 7.716/1989,
que trata dos crimes de racismo, até que o Congresso Nacional edite lei
sobre a matéria.
Além disso, o combate à violência de gênero também é um compro-
misso assumido internacionalmente pelo Estado brasileiro. Em soma a di-
versos tratados e convenções internacionais ratificados pelo país ao longo
do século XX, em 2015 o Brasil aderiu ao documento “Transformando o
Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, da
Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do qual se comprome-
teu, junto de outros países, a tomar medidas para promoção do desenvol-
vimento sustentável até 2030. O objetivo de nº 5 da Agenda é o de “al-
cançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
A ONU Brasil redigiu, ainda, um Glossário dos Termos do Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) 5.
O presente artigo analisa, à luz de teorias contemporâneas sobre o
gênero, notadamente os estudos queer, o ODS 5, integrando sua leitura
também à ótica dos direitos humanos. Para tanto, são utilizadas obras sele-
cionadas de Michel Foucault e Judith Butler, representativas de uma série
de teóricas que se debruçaram sobre o estudo da construção discursiva da
sexualidade e da própria identidade.
Na primeira seção, é apresentado o problema da violência de gênero
no Brasil por meio de alguns dados recentes colhidos do Atlas da Violência
2019 e também do olhar dos feminismos brasileiros sobre a violência de
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gênero, sinalizando, ao final do tópico, três marcos legais dessa política:
a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e a recente criminalização da
homotransfobia por meio da aplicação da lei que criminalizou o racismo.
São expostos os méritos dessas legislações e as críticas a elas tecidas pela
literatura jurídica e social.
A segunda seção expõe uma contextualização da criação da Agenda
2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável, suas disposições e
principais interlocuções com o problema global e brasileiro da desigualda-
de de gênero em seu reflexo mais grave: a violência.
A terceira relaciona o texto da Agenda 2030 com autores de grande
influência para as teorias contemporâneas de gênero, notadamente Michel
Foucault e Judith Butler, entre outros, bem como as autoras brasileiras que
se preocupam, há décadas, com a violência de gênero e acompanharam
atentamente os processos de criação e implementação das legislações co-
mentadas neste trabalho.
Por fim, a quarta seção analisa como a Agenda 2030 e os instrumentos
legais brasileiros podem contribuir para a reflexão de um direito pós-iden-
titário para o combate da violência de gênero.
O principal escopo da pesquisa é verificar as formas como a Agenda
2030 da ONU e o Glossário para o ODS 5, elaborado pela Força Tarefa da
ONU no Brasil, são refletidas no combate à violência de gênero no Brasil
em termos de política criminal. Do mesmo modo, procurar-se-á avaliar se
a atual política criminal de combate à violência de gênero adotada pelo
Brasil é compatível com os objetivos de redução da desigualdade de gênero
e empoderamento de mulheres e meninas.
2. As políticas estatais brasileiras para redução da violência de gênero
A magnitude da violência contra grupos vulneráveis2 no Brasil é notória e
alarmante. O Atlas da Violência 2019, divulgado pelo Instituto de Pesquisa
2 Utilizar-se-á o termo “grupos vulneráveis” em detrimento do termo “grupos minoritários”
em razão de não se tratar, necessariamente, de minorias (tendo em vista a numerosa população
feminina e LGBT no Brasil), mas de grupos historicamente desfavorecidos e sub-representados
política e economicamente. Neste sentido, “são vulneráveis quem tem diminuídas, por diferen-
tes razões, suas capacidades de enfrentar as eventuais violações de direitos básicos, de direitos
humanos. [...] essa vulnerabilidade está associada a determinada condição que permite identifi-
car o indivíduo como membro de um grupo específico que, como regra geral, está em condições
de clara desigualdade material em relação ao grupo majoritário” (DHES, 2014, p. 13-14).
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e da política criminal contra a violência de gênero no Brasil

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