Algumas contribuições da filosofia para a discussão sobre a verdade no processo penal

AutorFelipe Martins Pinto
Ocupação do AutorAdvogado Criminalista. Pós-Doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas79-124
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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA
FILOSOFIA PARA A DISCUSSÃO SOBRE
A VERDADE NO PROCESSO PENAL
2.1 APONTAMENTOS SOBRE A TEORIA DA
COR RESPONDÊNCIA – CORRENTE
FILO SÓ FICA LARGAMENTE UTILIZADA
PARA FUN DAMENTAR A VERDADE REAL
NO PRO CESSO PENAL
Historicamente, diversos adjetivos foram emprega-
dos e ainda o são em conjunto com a palavra verdade
para estabelecer o objetivo do processo penal: verdade
objetiva, verdade real, verdade processual, verdade his-
tórica etc. E todas as expressões, de maneira indistinta,
designam um mesmo conceito que enceta a ideia da
possibilidade de obter o conhecimento absoluto sobre a
verdade no processo penal, uma perfeita correspondên-
cia do enunciado com a realidade.
No processo penal pátrio e em diversos ordena-
mentos alienígenas, arrasta-se, ainda com bastan-
te fôlego e com poucos questionamentos, o legado
inquisitorial da verdade processual segundo a teoria
da correspondência, como explorado no item 2.1.3.,
seja por cômoda ignorância ou por uma ingenuidade
funcional.
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FELIPE MARTINS PINTO
A justiça moderna obedece ainda ao idealismo meta-
físico das antigas escolas; serve ainda para aplicar um
artigo do Código Penal a uma pessoa viva, doloroso
manequim, do qual o juiz não conhece, na realidade ou
por cção legal, nem as condições pessoais, nem a vida
física, intelectual e moral, e do qual ele não sabe mais
nada, após havê-lo marcado com o selo da lei.1
A verdade foi objeto de estudos de Aristóteles em
diversos escritos e, para ilustrar a apresentação sobre a
teoria da correspondência, merece destaque o trecho do
texto Categorias capítulo 12:
Se, com efeito, o homem existe, a proposição pela qual
nós dizemos que o homem existe é verdadeira; e, reci-
procamente, se a proposição pela qual nós dizemos que
o homem existe é verdadeira, o homem existe. Contudo,
a proposição verdadeira não é de modo algum causa da
existência da coisa; ao contrário, é a coisa que parece ser, de
algum modo, a causa da verdade da proposição, pois é da
existência da coisa ou da sua não existência que dependem
a verdade ou a falsidade da proposição. (14b16-23)2
A verdade no processo penal ainda está atrelada a
um juízo sobre a relação de conhecimento entre o sujei-
to que conhece e o fato por conhecer. Haverá êxito se
existir adequação, identidade ou conformidade entre a
representação do fato pelo sujeito que busca conhecê-lo
e o próprio fato, como realidade ontológica.
Os ensinamentos de Aristóteles são o gérmen da teoria
da correspondência a qual teve um grande incremento no
1 FERRI, Enrico. Os criminosos na arte e na literatura. Trad. Dagma
Zimmermann, Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001. p. 24.
2 ARISTÓTELES. Categorias: tradução, introdução e comentários de
Ricardo dos Santos. Porto: Porto Editora, 1995. p. 123.
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INTRODUÇÃO CRÍTICA AO PROCESSO PENAL
século XX, especialmente através das teorias de Russell,
Wittgenstein e, posteriormente, Austin.
A teoria da correspondência concebe verdadeira a pro-
posição capaz de reproduzir o acontecimento, projetar a
ocorrência concreta ou reetir o fato e se escorou na ideia
de que a realidade pode ser perfeitamente reetida através
de enunciados, ou seja, entende possível a existência de
uma verdade absoluta como imagem do mundo real.
Essa corrente losóca considera que a verdade de
uma sentença ou enunciado consiste em sua coincidên-
cia com a realidade, operação esta na qual se estriba o
tradicional e ultrapassado objetivo do processo penal: a
averiguação objetiva da verdade histórica.
O fato mostrado como possível deve converter-se em
realidade armativa ou negativa em todos os seus an-
tecedentes e consequências juridicamente relevantes. A
premissa menor do silogismo judicial deve integrar-se
completamente, através de operações práticas e críticas
dirigidas a obter a verdade do acontecimento julgável.
Deve reviver-se o passado em sua reconstrução e repro-
dução através das manifestações atuais.3
Wittgenstein4 defendeu que a significação de-
tinha uma essência invariável, uma dimensão
3 No original, El hecho mostrado como posible debe convertirse em realidad
armativa o negativa em todas sus antecedentes y consecuencias jurídicamente
relevantes. La premissa menor del silogismo judicial debe integrarse completa-
mente, a través de operaciones prácticas y críticas diriidas a obtener la verdad
del acontecimiento juzgable. Debe revivirse el pasado em su reconstrucción y
reproducción a través de las actuales manifestaciones. In, OLMEDO, Jorge
A. Clariá. op cit. t. I. p. 225 ss. (Tradução livre).
4 Wittgenstein, originalmente correspondista, posteriormente, adere à
corrente pragmatista, segundo a qual o signicado de um conceito
deve ser dado pela referencia às consequências práticas ou experi-
mentais de sua aplicação.
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