Princípio da verdade real

AutorFelipe Martins Pinto
Ocupação do AutorAdvogado Criminalista. Pós-Doutorado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas5-78
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PRINCÍPIO DA VERDADE REAL
1.1 ALGUMAS BASES HISTÓRICAS
A contextualização do surgimento do princípio da
verdade real é uma etapa relevante no desenvolvimento
do presente trabalho, uma vez que a essência do princí-
pio que consistiu em um dos alicerces de estruturação
do processo inquisitório medieval e moderno, mantém-
se até os dias de hoje como fundamento de inúmeras
decisões jurisdicionais.
Assim, a investigação dos verdadeiros propósitos do
processo no período da Inquisição, mascarados por argu-
mentos de retórica extremamente atraentes para o ouvinte
ingênuo ou desatento servirá de suporte para a análise do
princípio da verdade real no momento presente.
1.1.1 Delineamentos sobre o surgimento e o desen-
volvimento da Inquisição
A descoberta do gérmen da inquisição já mereceu
a dedicação de inúmeros historiadores e suas conclu-
sões não são necessariamente convergentes. Alguns es-
tudiosos remontam a gênese do movimento ao século
IX, durante o reinado da terceira dinastia de Califas, os
Abássidas, sobre o império mulçumano, momento em
que se instituiu “[...] a minha para reprimir toda heresia
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FELIPE MARTINS PINTO
que afrontasse a doutrina de Maomé, mas a tese é des-
provida de fundamento”1.
A origem mais consolidada da inquisição tem suas ra-
ízes no Império romano com a cognitio extra ordinem2 e,
posteriormente, ainda no Direito romano antigo, com
a expressão inquisitio que representava a formulação de
uma acusação pela autoridade judicial, quando ausentes
denúncias ou acusações sustentadas por testemunhas.3
Complementarmente às cruzadas que, a partir de
1095, com o Papa Urbano II, inauguraram uma nova
rota para o domínio de Deus, no nal do século XII,
deagrou-se a Inquisição Medieval, movimento políti-
co-religioso em que a Igreja Cristã arquitetou uma rea-
ção contra a difusão no ocidente de movimentos heré-
ticos como o maniqueísmo, o valdismo e, mais tarde, o
cartarismo4. A Igreja nutriu especial preocupação com
os cátaros de Albi, pois apesar de originalmente se con-
centrarem no sul da França, as suas ideias se irradiaram
a outras regiões próximas e demonstraram uma impres-
sionante capacidade de penetração e proselitismo no
interior das novas classes, desenvolvidas graças ao res-
surgimento do urbanismo após o ano mil.5
1 [...] la minha per reprimere ogni heresia nei confronti della doutrina
di Maometto, ma la tesi è priva de fondamento. In, CÁRCEL, Ricar-
do Garcia. L’inquisizione. Trad. Stefano Baldi. Milão: Fenice 2000.
p. 6. (Tradução livre).
2 MARICONDE, Alfredo Vélez. Derecho procesal penal. 2. ed. Buenos
Aires: Lerner, 1969. t. I. p. 93.
3 CÁRCEL, Ricardo Garcia. op cit. p. 6.
4 Ibdem.
5 BENAZZI, Natale, D’AMICO, Matteo. Il libro nero dell’inquisizio-
ne. 9. ed. Milão: Piemme, 2002. p. 8-9.
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INTRODUÇÃO CRÍTICA AO PROCESSO PENAL
Após a ecaz investida contra os cátaros, a Inquisição
assumiu sua primeira forma concreta a partir de sua co-
dicação no decreto papal Ad abolendam6 emanado pelo
Papa Lúcio III no ano 1184, no qual se estabeleceu o
primeiro delineamento do procedimento inquisitorial.
Posteriormente, as bulas papais Licet ad capiendos
(1233) e Ad Exstirpanda (1252), ambas de autoria do
Papa Gregório IX e a bula Clementina Saepe (1306),
de autoria do Papa Clemente V, incrementaram a per-
seguição aos hereges e, mais tarde, a partir do ano 1438,
com a descoberta de reuniões sabáticas na região alpina
principiou-se, também, a caça a feiticeiras.7
Sob o pálio de combater o diabo e as suas diver-
sas manifestações, a Igreja operou um combate, não só
aos maniqueístas, valdistas e cátaros, mas uma batalha
irrestrita e intolerante à diversidade de opiniões e de
crenças, enm, às diferenças. Assim, imprimiu-se uma
perseguição a judeus, moriscos, feiticeiras, pensadores
livres e místicos.8
A palavra heresia, que em grego (αiρεσις) signica
escolha9, a partir da manipulação imposta pela Inqui-
sição tornou-se um termo genérico e com conotação
depreciativa a partir do qual incluíam aleatoriamente
quaisquer condutas que fossem consideradas contrá-
rias, novas ou simplesmente diferentes do stablishment.
O objetivo primordial não era a imposição da sanção ao
6 LUCIO III PP, Decreto Ad abolendam, 4 de novembro de 1184, en
Bullarum diplomatum et privilegiorum Sanctorum Romanorum Pon-
ticum. Taurinensis: 1858, Torino. p. 20-22.
7 CÁRCEL, Ricardo Garcia. L’inquisizione. op cit. p. 8.
8 BENAZZI, Natale, D’AMICO, Matteo. op cit. p. 9-10.
9 Dicionário académico de grego-portugês/portugês-grego. Porto: Porto
Editora, 2008.
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