Andanças da Inquisição no Brasil

AutorNilo Batista
CargoProfessor do programa de Pós-graduação em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
1
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.1-46.
Copyright © 2023 Nilo Batista
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71158 | ISSN: 2179-8966 | e71158
[Artigos inéditos]
Andanças da Inquisição no Brasil
Inquisition’s adventures in Brasil
Nilo Batista1
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
nilobatista@nb-advs.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5512-4412.
Artigo recebido em 07/11/2022 e aceito em 15/01/2023.
Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.1-46.
Copyright © 2023 Nilo Batista
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71158 | ISSN: 2179-8966 | e71158
Resumo
Concebido como a segunda parte de uma aula sobre Inquisição moderna (a primeira está
publicada em Capítulos de Política Criminal, Rio, 2022, ed. Revan, pp. 71 ss), o texto
contém um estudo dos procedimentos da Inquisição portuguesa, particularmente das
disputas relacionadas à (in)suficiência da testemunha única e à ignorância em que os
acusados eram mantidos acerca da identidade das testemunhas e das circunstâncias de
seus depoimentos, ressaltando-se as funções místicas então atribuídas à confissão.
Registradas três aculturações que favoreceram o transplante da mentalidade inquisitorial
sobre os povos originários e mais tarde sobre as culturas africanas para cá desterradas, o
texto se detém sobre as quatro Visitações que o Santo Ofício empreendeu no Brasil. Por
fim, confissões e delações produzidas nessas Visitações fornecem a matéria prima para
conhecermos nossas blasfêmias e as atividades de nossos feiticeiros, adivinhos e
curandeiros, com a observação de que a perseguição a esses últimos sobrevive nos dias
de hoje.
Palavras-chave: Política criminal; Inquisição; Visitações; Blasfêmias; Adivinhos;
Curandeiros.
Abstract
Conceived as the second part of a class on modern inquisition (the first class has been
published in Capítulos de Política Criminal, Rio, 2022, ed. Revan, pp. 71 ss), the text
contains a study on the procedures of the Portuguese inquisition, especially of the
disputes related to the (in)sufficiency of the sole witness and to how its identity and the
circumstances of their testimony were kept from the accused, all the while highlighting
the mystic functions attributed to the confession. Acknowledging three acculturations
that favored the transplant of the inquisitorial mentality into the native populations and
later to the exiled African cultures, the text dwells on the four Visitations to Brazil
undertaken by the Holy Office. Finally, confessions and denounces produced during those
Visitations provide the raw material to unravel our blasphemies and the activity of our
sorcerers, fortune tellers and healers, noting that persecution to the latter survives to this
day.
Keywords: Criminal policy; Inquisition; Visitations; Blasphemies; Fortune tellers; Healers.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.1-46.
Copyright © 2023 Nilo Batista
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71158 | ISSN: 2179-8966 | e71158
1. Introdução. Marcos temporais
Ao contrário do que se passou na América latina de fala castelhana, para onde a Inquisição
se expandiu criando três tribunais (em Cartagena, Lima e México), não tivemos instalado
no Brasil-colônia um tribunal. Tivemos, sim, algumas Visitações entre o final do século XVI
e meados do XVIII, sobre as quais nos deteremos mais tarde, e muitas inquirições,
desenvolvidas pela justiça episcopal ordinária e remetidas por vezes, junto com o
acusado preso ao Tribunal de Lisboa, cuja jurisdição alcançava todo o território
brasileiro. Não foi por falta de empenho. O primeiro Visitador, Heitor Furtado de
Mendonça, propôs que se estabelecesse aqui um tribunal, do qual ele próprio seria
membro1. Mais importante, por três vezes, ao longo do século XVII (em 1621, 1639 e
1671) reis de Portugal solicitaram sua i nstalação2. É possível que a significativa presença
de cristãos-novos na economia colonial, da gestão de engenhos ao comércio, tenha
desaconselhado a medida, que poderia acarretar uma fuga de capitais similar àquela
ocorrida na m etrópole a partir das conversões forçadas dos judeus e das subsequentes
perseguições.
Os Visitadores, se dispunham de plenas atribuições para investigar os delitos
submetidos à jurisdição do Santo Ofício, exerciam escassa competência para julgá-los,
restrita a blasfemos, bígamos e “outros de culpas menores”, devendo nos casos graves
remeter acusado e autos de inquirição a Lisboa3. Não deixaram, por certo, de encenar
alguns autos-de-fé, nos quais reconciliados faziam abjuração de levi (a única permitida
para Visitadores) e as penas mais duras eram os açoites; nada de fogueira. Os casos graves
eram julgados na metrópole.
A falta de um tribunal instalado não travou o zelo inquisitorial na colônia. O
pioneiro réu, entre os residentes no Brasil, foi Pero do Campo Tourinho, donatário da
Capitania de Porto Seguro, acusado em 1546 de blasfêmias heréticas. A inquirição,
empreendida pelo vigário da vila de Porto Seguro e por dois juízes ordinários, ocupou-se
1 Gonsalves de Mello, José Antônio, Gente da Nação, p. 169.
2 Pieroni, Geraldo, Os Excluídos do Reino, p. 68.
3 Gonçalves de Mello (p. 169) transcreve o despacho do Conselho Geral que restringiu a competência do
Visitador Heitor Furtado de Mendonça. Este historiador, compulsando cerca de cinquenta processos julgados
na Visitação, sugeriu a exis tência de um tribunal em Olinda; mas a concomitância dos julgamentos com a
Visitação e a presença do Visitador entre os juízes do “tribunal” não parecem sufragar -lhe a sugestão (cf.
Gente da Nação, pp. IX ss e 167 ss). Mesmo em Portugal, quando a visita era realizada pelo próprio Inquisidor
em distrito de sua jurisdição territorial, sua competência era restrita aos “casos leves, que não chegarem a
mais que de leve suspeita (...) que não requeiram prisão nem pena corporal” (Reg. 1613, II, VI – p. 621).

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