As donas das vozes

AutorRenata Queiroz Dutra
Páginas210-265

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A partir do contexto do trabalho vivido apresentado no capítulo segundo, do estado da arte da regulação estatal apresentado no capítulo terceiro e das premissas teóricas já assentadas no capítulo primeiro, pretende-se, nesse capítulo, com respaldo na pesquisa empírica levantada (notadamente as entrevistas384), analisar o papel dos sujeitos que trabalham na dinâmica regulatória que se desenhou no setor de teleatendimento em Salvador no período recortado (2007-2016).

Inspirado na canção de Chico Buarque de Holanda385 e também na associação já proposta por Venco386, o título propõe abrir a escuta para o que pareceu ser silenciado na esfera regulatória: as vozes daqueles que trabalham. E, no caso desta pesquisa, precisamente as vozes daquelas que trabalham e que entrelaçam, com a complexidade consubstancial387, as suas posições de classe, de género e de raça na experiência vivida.

A condição de silenciamento que aparece na objetificação dessas trabalhadoras e na distância tempo-espacial das suas pautas em relação àquilo que é levado ao crivo público se reproduz, em grande medida, nos espaços de representação sindical. É a partir da observação da construção da resistência no local de trabalho e também das interações entre essas resistências e as estratégias e práticas sindicais, que se lança o olha sobre a (im)possibilidade de construção de uma voz constitucional por essas mulheres trabalhadoras, por meio dos processos de disputa da regulação social do trabalho.

É no contexto da empresa de matiz neoliberal e de uma categoria extremamente fragilizada pela vivência da precariedade do trabalho (resultado dos processos de ter-

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ceirização, da prática da remuneração variável, de registros organizacionais de assédio moral, da intensidade do trabalho e da sua baixa remuneração, que igualmente se insere num contexto de alta competitividade e prática de metas excessivas) que será perquirido o papel das trabalhadoras na dialética da regulação do trabalho, avaliação que se fará em diversos níveis que se sobrepõem.

Certamente, a análise considerará o papel fundamental dos sindicatos, seja na condução das negociações coletivas, seja na atividade de mobilização e construção de pautas com a categoria. Também serão observadas as interações entre os sujeitos trabalhistas, em sua feição coletiva (institucionalizada no sindicato) e individual, na provocação e consequente mobilização das instituições públicas de regulação do trabalho (MTE, MPT, Justiça do Trabalho). Igualmente, os processos de resistência travados no âmbito do cotidiano das relações de trabalho, de forma individual ou coletiva, ainda que não angariados pelas instituições sindicais, foram colhidos das falas dos trabalhadores e das trabalhadoras entrevistados.

Todas essas ocorrências, que se sobrepõem no espaço-tempo, serão consideradas em sua potencialidade de interferir nas dinâmicas de regulação, ou, ao menos, tensioná-la, bem como em sua significação social e jurídica, consideradas as ideias de democracia e cidadania em face dos processos regulatórios.

Parte-se da premissa de que tais dinâmicas de resistência, embora tenham aptidão para contrapor a lógica da acumulação, o fazem em movimento contraditório ou ambíguo, eis que seus sujeitos estão inseridos e são forjados por processos de trabalho (e de convivência social) condicionantes de suas subjetividades388, de forma, aliás, mais intensa sob a égide do neoliberalismo que o que já ocorrera em outros ciclos do capitalismo.

Chega-se, pois, à intersecção entre a conformação subjetiva ao trabalho, decorrente das dinâmicas de precarização, cobrança excessiva e disciplina rígida nas quais se assentam a estratégia de gestão da empresa de matiz neoliberal, e o agir dos trabalhadores, individual ou coletivamente, em face delas.

Para construção dessa análise, as categorias estudadas no contexto das falas espontâneas dos trabalhadores nas entrevistas foram: as dinâmicas de solidariedade/cooperação no trabalho; os discursos de medo/insegurança/individualismo; as narrativas individuais de resistência; as narrativas coletivas de resistência; as relações com o sindicato; as percepções sobre direitos; e, por fim, as relações com as instituições públicas de regulação.

Em síntese, as sete categorias permitem que se avalie, num primeiro momento, a posição subjetiva de predisposição ao conformismo e/ou à construção conjunta e efetiva de resistências.

Num segundo momento, autoriza que se perceba em que medida essas predisposições são traduzidas em ações concretas e de que maneira essas ações se restringem aos indivíduos ou são capazes de alcançar os coletivos, bem como quais são as formas

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de manifestação escolhidas, contra o que elas se voltam e que significado elas adquirem nas relações individuais e coletivas de trabalho. Nesse segundo momento será considerada a participação, as ausências e os conflitos com a organização sindical, bem como a percepção dos trabalhadores a esse respeito.

Por fim, as duas últimas categorias permitem avaliar se e como essas insurgências são traduzidas na linguagem dos direitos, bem como se, realizada essa vinculação, o recurso a instituições estatais de vigília do Direito do Trabalho é uma prática ou não dos trabalhadores e quais são as contingências postas.

4.1. Dinâmicas de solidariedade x dinâmicas de individualismo e medo

Pensar a condição dos trabalhadores, enquanto sujeitos que se deparam com a gestão e a disputa regulatória travada pela empresa neoliberal é pensar numa experiência vivida de forma necessariamente ambígua, como é inerente aos objetos e seres culturais389.

Se a experiência do trabalho é vivida a partir do contexto de exploração e o compartilhamento dessa vivência atravessa a socialização dos sujeitos, decerto ocorrências de resistência perpassarão, de modo dialético, tais processos. Não é menos certo, todavia, que essa mesma vivência será moldada pela racionalidade neoliberal que, além de difusa nos diversos meios de formação de opinião e convivência social, é erigida, sobretudo, a partir de uma organização do trabalho que deposita na individualização dos sujeitos, de suas demandas e de suas responsabilidades, a resposta para questões sociais de maior complexidade.

É por essa razão que as categorias da solidariedade e do individualismo (aqui englobando, indiferentemente, tanto perspectivas que, egoisticamente, autodeclaram a prioridade nas demandas do sujeito em detrimento do coletivo, assim como aquelas que, por medo ou insegurança social, assim se apresentam, de forma defensiva) devem ser analisadas em par, não se entendendo as menções a um ou outro como excludentes, mas como componentes necessários da complexidade que desenha a vivência contraditória do trabalho.

Muitas vezes, a contradição apareceu no discurso de um mesmo trabalhador. Em outros casos, a depender da trajetória dos operadores, entrevistas diferentes pareciam ter conteúdos e oferecer informações opostas. Entretanto, é sob o signo da ambiguidade390(não só da narrativa, mas da experiência mesma) que tais ocorrências serão analisadas, como forma de tentar exaurir os limites de cada um dos elementos considerados, e não de tentar observar a prevalência de um ou outro.

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A referência aos laços estabelecidos com os colegas de trabalho como algo positivo e engrandecedor prevalece nas narrativas. Amizades, relacionamentos amorosos, parcerias e o cotidiano compartilhado aparecem nos relatos. Aliás, é esse sentimento de grupo e apoio mútuo que aparece também, muitas vezes, como o ponto positivo que os operadores enxergam em seu trabalho, dentre muitos pontos negativos desabafados. Ou seja, as relações afetivas estabelecidas entre colegas são apontadas como suporte importante para o enfrentamento da aridez do trabalho:

Sim, entre os operadores sim, a maioria sente a dor do outro e, se tiver que parar, para. É sempre assim um ajudando o outro (OPERADORA DE TELEATENDIMENTO, entrevista n. 15).

Aí é festa, aí é ótimo. O relacionamento entre operadores tem que existir, se não a gente fica louco. Porque trabalhar hoje como telemarketing realmente parece ser fácil para as pessoas, mas é muito estressante. Eu não faço comparação com outras profissões, mas eu posso dizer que realmente é estressante por viver nela. Desgaste mental, desgaste físico, é estressante e o que faz a gente fugir dessa loucura é a relação com os operadores, com os amigos. A gente cria amizades, dá risada, no cotidiano conversar o que ouviu do cliente um do outro, ao sair da empresa poder sair, comemorar, se divertir em outro lugar ou até mesmo, como eu vejo muito, estudarem juntos porque estuda o mesmo curso, cursa a mesma faculdade. Então, hoje é o que faz a gente equilibrar mais, o que dar vontade de continuar aquelas 6 horas e 20 empurrando é aquele seu amigo operador do seu lado. Que faz você dar risada, espairecer. (OPERADORA DE TELEATENDIMENTO, entrevista n. 38)

A questão da equipe, de trabalho em equipe, ter amizades. Hoje eu vou na casa das meninas, as meninas vão na minha casa no meu aniversário. Então assim, as amizades que eu peguei lá são amizades ótimas, boas, maravilhosas, entendeu? Não foi só amizade do trabalho e acabou eu não falo mais com ninguém, não. Eu tenho amizades até hoje. Não são amizades de 'face', 'zap', não. São amizades de sair, de conversar. Sair para almoçar, ir na casa da outra, vai lá, chama o pai de tio, a mãe de tia. Então assim, foi algo muito bom conhecer pessoas que você consegue manter uma amizade mesmo fora do trabalho. (OPERADORA DE...

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