Regulação social do trabalho: instituições, sujeitos e contradições

AutorRenata Queiroz Dutra
Páginas33-79

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1.1. Regulação social do trabalho
1.1.1. Centralidade do Trabalho, transformações do capitalismo e regulação

Esta pesquisa se orienta a partir da premissa da centralidade do trabalho15, tomando-o como categoria principal para a compreensão das relações sociais, da construção de ideologias e da formatação do Estado.

É a partir da compreensão do mundo do trabalho e de sua atual complexidade, que se propõe a reflexão a respeito das relações entre sociedade, Constituição e Estado.

Tal compreensão passa necessariamente pelo reconhecimento das transformações recentes pelas quais foi atravessado o trabalho, considerando as transformações do próprio sistema capitalista, o processo de financeirização da economia, a reestruturação produtiva pós-fordista16, a ascensão do pensamento político (ou racionalidade17) neoliberal e a consequente complexificação, heterogeneização e fragmentação da classe trabalhadora18.

As transformações pelas quais passou o mundo do trabalho, que ensejam, como ensina Gramsci, não apenas transformações nas formas de trabalhar, mas também transformações dos modos "de viver, de pensar e de sentir a vida"19, repercutem necessariamente e são, ao revés, alimentadas, por novas formas de organização do Estado, das instituições públicas, do Direito e da própria sociedade.

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Um novo modelo de acumulação de riquezas, intitulado por Harvey de acumulação flexível20, demanda, para seu funcionamento, um modelo de regulação que o viabilize e que é construído não apenas pelo aparato estatal e pelo conjunto de medidas que ele engloba, mas também pela sociedade, enquanto coletivo e conjunto de indivíduos que se conformam às novas dinâmicas de trabalho e de reprodução do capital.

Essa moldura implica perceber as relações entre Estado e sociedade a partir do prisma da exploração do trabalho, bem como identificar, na dinâmica constitucional contemporânea, que os próprios limites conquistados por meio da linguagem dos direitos dos trabalhadores são acoplados a determinados modelos de regulação, que, ao cabo, podem restringir ou potencializar sua eficácia, em processos dialéticos.

A construção de subjetividades a partir do trabalho, que se dá com maior intensidade e carga manipulatória na fase pós-fordista do sistema capitalista21, igualmente molda a atuação dos sujeitos, enquanto indivíduos e coletivos, na disputa pelas dinâmicas de regulação do capitalismo.

A ideia de regulação das relações de trabalho se insere num conceito mais geral de regulação do próprio sistema capitalista, que tende a contradizer a concepção económica neoclássica que pressupõe uma harmonia intrínseca às economias de mercado.

A expressão "regulação", todavia, tem conteúdo polissêmico e pode remeter a um conjunto mais amplo ou mais restrito de condutas e sujeitos22.

Contrapondo-se às ideias centrais do liberalismo económico, a perspectiva da intervenção estatal justifica-se em face do caráter estático e, por isso mesmo, deficiente, do modelo económico neoclássico. Como explica Ana Frazão, o vício desse esquema teórico reside em tomar a situações de consumidores e das empresas como dados não questionados, não fazendo qualquer reflexão sobre tais pontos de partida: tal exercício teórico implica abstrair da análise questões cruciais, como as diferenças de classe, as relações de poder e as desigualdades sociais, numa representação completamente abstrata dos sujeitos envolvidos no processo de produção e circulação de riquezas23.

A noção de regulação remete à construção crítica de Karl Polanyi em relação ao liberalismo económico e à premissa do mercado autorregulável24. Para o autor, ao instituir a economia de mercado, amparada nos pressupostos da igualdade e da liberdade dos sujeitos, o sistema capitalista prescindiria de uma fundamentação moral, religiosa ou política que o embasasse, se desenvolvendo a partir da lógica da reprodução do capital e da acumulação de riquezas, mediante fundamentos económicos que tenderiam a colonizar a vida social de modo danoso à sociedade.

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Como anunciou Polanyi, ao contrário do que supunha o pensamento liberal, a orientação tendencial do sistema capitalista para converter em mercadoria todos os fa-tores sociais, inclusive elementos como terra, trabalho e dinheiro, caminharia fatalmente para a degeneração da condição humana, do meio ambiente e da própria viabilidade produtiva do capitalismo25.

As consequências da extensão da lógica do mercado, supostamente autorregulável, para as demais esferas da vida social resultariam em um processo autodestrutivo para a organização social e castigador para os sujeitos trabalhadores:

Permitir que o mecanismo do mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade. Essa suposta 'mercadoria', a força de trabalho, não pode ser impelida, usada indiscriminadamente, ou até mesmo não utilizada, sem afetar também o indivíduo humano que acontece ser o portador dessa mercadoria peculiar. Ao dispor da força de trabalho de um homem, o sistema disporia também, incidentalmente, da entidade física, psicológica e moral do homem ligado nessa etiqueta. (...) Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a sua substância humana natural, assim como a organização dos negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico.26

A necessidade de contramovimentos que freassem o mecanismo autodestrutivo do sistema capitalista fez com que se vislumbrasse, então, a ideia de regulação, compreendida por Polanyi como a atribuição vinculada ao Estado (pressionado e demandado pela sociedade civil) do papel de formular ações, com base em fundamentos políticos e sociais de proteção, que, se não orientassem os caminhos do sistema de mercado, ao menos impusessem limites à cartela de possibilidades por ele eleita27.

A ideia de regulação, na obra de Polanyi, vai se afinar com a noção de intervenção estatal no campo económico. Tal noção vai ser moldar e se transformar a partir das diferentes perspectivas de Estado que a orientam, permitindo intervenções maiores, menores, seletivamente diversas, mais ou menos democráticas28.

Assim, o desenvolvimento e a afirmação do Estado Liberal, sucedido pelo Estado Social, e pelo paradigma aperfeiçoado do Estado Democrático de Direito, num processo

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não linear e recentemente fissurado pela ascensão de políticas de orientação neoliberal29, compõem cenários diversos para se pensar o fenómeno regulatório, na chave acima apresentada.

Portanto, essa ideia de regulação vai se desenvolver a partir das múltiplas interferências normativas do Estado nas relações de trabalho, na concorrência, na garantia da propriedade privada e da livre iniciativa, nas questões ambientais, tributárias, na saúde pública, entre outros temas caros à manutenção da tessitura da sociedade de classes. Essas interferências, em qualidade e intensidade, oscilam em função dos paradigmas de Estado constitucional contemporâneo, mas tem pilares assentados na ideia de direitos fundamentais30.

Como observa Frazão, ao contrário do que se supõe, mesmo no Estado liberal, a intervenção estatal na economia foi significativa, de modo a se questionar se teria sido possível à economia prosperar sem o arcabouço jurídico que lhe foi proporcionado pelo Estado (proteção da propriedade, da vida, da proteção aos contratos, entre outros). Para a autora, o mercado só existe em razão do Estado e evidência significativa disso teria sido a demanda, além do Código Civil, de legislações aptas a acomodar e assegurar as relações comerciais e, posteriormente, mesmo a reprimir o abuso do poder económico31.

Um segundo momento, demarcado como Estado Social, por outro lado, modifica a característica seletiva da intervenção estatal na economia e na sociedade, para compreender o Estado como planejador do desenvolvimento económico e das relações de produção. Essa perspectiva não perpassou, senão em modelos autoritários, a negação dos conflitos e sujeitos sociais, mas sua integração, como explica Giuseppe Cocco:

Isto é, a expansão do papel do Estado, e em particular de sua intervenção direta na regulação do mercado e no controle de porções importantes do aparelho produtivo teve como condição necessária a recomposição política, em sujeitos coletivos, das elites empresariais e dos trabalhadores ao mesmo tempo. Em outras palavras, podemos dizer que o Estado-planejador (fordista--keynesiano) afirmou-se como dispositivo de integração do conflito social. Este último transformou-se assim de trabalho negativo (de ruptura) em principal fator de desenvolvimento.32

No plano jurídico, todavia, os excessos do Estado Social se localizam na assunção de uma tutela paternalista33 que, nas palavras de Menelick de Carvalho Netto, "elimina precisamente o que ela afirma preservar", na medida em que "subtrai dos cidadãos o

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respeito à sua capacidade de autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando eternamente a minoridade do povo reduzido a uma condição de massa"34.

Também Ana de Oliveira Frazão aponta as contradições do Estado Social a partir da "funcionalização crescente da autonomia privada diante do poder público, a fim de assegurar a harmonia social", conceito este deturpado por Estados totalitários e que, em grande medida, contribuiu para a construção de um nível significativo de passividade dos sujeitos em face do Estado35.

Essa crítica será...

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