As lutas por justiça socioambiental diante da emergência climática/Struggles for socio-environmental justice in the face of climate emergency.

AutorIsaguirre-Torres, Katya Regina

Introdução

As lideranças dos quase 200 paÃÂses que participaram da 26a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em novembro de 2021, apresentaram propostas bastante modestas para responder àcrise climática. Apenas alguns meses depois, em fevereiro de 2022, o Painel Intergovernamental da ONU sobre mudanças climáticas (IPCC) (1) apresentou um relatório dramático, no qual aponta a ineficiência das medidas que vêm sendo implementadas pelos paÃÂses, e a gravidade das consequências do aquecimento global para vários povos do mundo.

Na verdade, as propostas apresentadas na COP 26 assumiram compromissos muito mais singelos que a COP 21, que resultou no Acordo de Paris (2015). Os paÃÂses desenvolvidos, apesar dos discursos de seus representantes, não assumiram o papel histórico que tiveram na emissão de poluentes. E se recusaram a respeitar as metas de redução, àmedida que isso implicava qualquer ação que pudesse afetar as expectativas de lucros de suas corporações. Basta observar, que tais paÃÂses não assumiram seu papel na dÃÂvida climática ao não transferirem recursos para o fundo climático, uma proposta de apoio aos paÃÂses em desenvolvimento que sofrem com os impactos das mudanças climáticas.

Na COP 27 que acontece neste mês no Egito (2), a expectativa em torno da postura do Brasil é grande, especialmente tendo em vista a vitória nas eleições presidenciais por LuÃÂs Inácio Lula da Silva, dando fim a um governo autoritário que liberou o garimpo ilegal e fez vista grossa ao desmatamento, incentivando o armamento e a violência contra camponeses e camponesas, povos originários e tradicionais. A COP 27 vem na promessa de que os paÃÂses apresentem em suas contribuições nacionais determinadas propostas mais ambiciosas para conter o aquecimento do planeta e busca implementar os mecanismos de mitigação/adaptação. No entanto, as negociações em torno desses mecanismos e as soluções "verdes", pensadas em termos de um mercado global, não são suficientes para conduzir a uma efetiva transição. Os povos originários e tradicionais cobram na COP 27 posturas sobre a demarcação de terras e o enfrentamento do racismo ambiental e, neste aspecto, é essencial que eles tenham seus espaços e lugares de fala na convenção.

No contexto das discussões internacionais nota-se que a agenda que vem sendo promovida por organismos multilaterais para enfrentamento da emergência climática reproduz assimetrias históricas da relação de poder entre o Norte e o Sul Global. Enquanto grandes potências assumem uma agenda verde e ecológica dentro de seus paÃÂses, ou mesmo financiam polÃÂticas nacionais para se adaptar a um clima mais quente, outros paÃÂses sofrem, em geral ao Sul, com impactos socioambientais decorrentes das mudanças climáticas. Também, é possÃÂvel afirmar que não se aborda de maneira profunda a problemática das empresas transnacionais do Norte Global que avançam sobre territórios ao Sul global, promovendo o desmatamento, a intensificação do uso de combustÃÂveis fósseis e causando danos irreparáveis àNatureza e as suas gentes.

Longe de desvelar um novo cenário mundial, a crise climática reflete a reprodução de um padrão global de poder colonial, sobretudo na distribuição desigual do desenvolvimento e suas consequências entre as nações. AnÃÂbal Quijano (2007, p.93-94) constrói o conceito de colonialidade de poder para se referir ao modelo de relações sociais que se constitui a partir da "invenção da América Latina", no qual há uma classificação racial/étnica da população, como eixo norteador do padrão de poder, outrossim se hierarquiza saberes constituindo a Europa como detentor do monopólio, tendo a centralização do poder no Estado-Nação. Tal conceito serve para analisar a desigualdade na distribuição dos impactos da crise climática.

Entre as nações do mundo há um desenvolvimento desigual e combinado (MARINI, 2011), que nos permite compreender as diferenças na polÃÂtica interna e internacional para o clima. As nações ricas sustentam altos padrões de desenvolvimento social e preservação ambiental por disporem de recursos extraÃÂdos de paÃÂses do Sul global (ou para sermos mais precisas a teoria proposta, dependentes). Os paÃÂses "subdesenvolvidos" sofrem a externalização dos problemas do desenvolvimento, sustentam os impactos ambientais: queimadas, barragens, agrotóxicos, transgênicos, contaminação das águas, trabalho escravo, retirada de direitos trabalhistas, superexploração do trabalho. Os paÃÂses dependentes não produzem subdesenvolvimento por causalidade internas, mas por estarem submetidos a estrutura desigual de desenvolvimento pensada entre as nações, e consequentemente da distribuição dos ônus dos impactos.

Esses elementos permitem definir o poder hegemônico, expresso nas negociações das Conferências das Partes, centrado nas negociações entre Estados, sendo que alguns deles possuem maior poder polÃÂtico do que outros, àmedida que essas negociações reproduzem estruturas da dependência, assim como da colonialidade do poder. Assim, indÃÂgenas, quilombolas, camponeses, mulheres, esses povos "Outros" estão situados fora dos espaços de poder e decisórios, não àtoa constituindo espaços alternativos paralelos.

Em face disso, movimentos populares têm construÃÂdo dinâmicas de resistência àcrise climática, articulando uma crÃÂtica contundente às propostas hegemônicas, combinada com a proposição de alternativas para além do papel do Estado em definir soluções. Partindo dos ensinamentos de AmÃÂlcar Cabral (1979, p.7-31) entende-se essa resistência como a organização de uma força contrária a reprodução do colonialismo e imperialismo na agenda ambiental, que parte do entendimento de ser necessário destruir um determinado modelo de desenvolvimento para construir algo novo, combinando formas polÃÂticas, econômicas, culturais.

Nessa empreitada os movimentos, especialmente na região latino-americana vêm pautando outras abordagens da relação entre ser humano e Natureza, conectadas a reflexões sobre cortes estruturais como classe, raça e gênero, se propondo a construir, desde sua própria experiência históricas "alternativas ao desenvolvimento" (ACOSTA, 2011). Para fugir de uma visão conservacionista da Natureza que não esteja integrada aos sujeitos que nela habitam. Logo, a adoção de uma perspectiva mais integrada e relacional, denominada socioambientalismo, na qual se conecta as lutas por justiça social com o respeito a biodiversidade (SANTILLI, 2012, p.28). É por isso que a construção de uma noção de justiça para crise climática, entendida em um contexto de emergência, subentende uma transformação radical do modelo de desenvolvimento hegemônico e passa pela percepção da imbricação do social com o ambiental, e portanto, estamos falando de uma justiça socioambiental. É justamente sobre esse caminhar que queremos aprofundar no artigo que se segue, a partir da pesquisa-ação.

  1. A noção de emergência climática a partir das lutas socioambientais

    A Convenção Quadro de Mudança do Clima (CQMC), assinada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992, define uma série de diretrizes e metas cujo objetivo procura estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. A convenção apresenta a definição de mudança climática, a qual atribui direta ou indiretamente àatividade humana a alteração da composição da atmosfera global, diferenciando-se da variabilidade climática natural. O órgão supremo da CQMC é a Conferência das partes (COP), onde os delegados governamentais dos paÃÂses signatários da Convenção, tem poder de voto, avaliam a situação das mudanças climáticas no planeta e propõem mecanismos. Participam como observadores jornalistas, organizações não governamentais (ONGs), representantes dos povos, dos movimentos sociais e da sociedade civil.

    O acordo de Paris de 2015, que surge da COP 21 da CQMC, veio no sentido de recuperar os ânimos de Kyoto (1997), e nele, 195 paÃÂses prometeram realizar ações para que o aumento da temperatura média do planeta ficasse abaixo de +2[degrees] C, e se possÃÂvel dentro de +1,5[degrees] C. Para atingir as metas do acordo os paÃÂses apresentaram suas contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), que são metas e diretrizes domésticas voluntárias as quais poderão ser cumpridas para deter o aquecimento global. As contribuições brasileiras foram apresentadas durante o governo de Dilma Rousseff e a partir das quais o paÃÂs se comprometeu em reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 37% para o ano de 2025, tendo as referências de 2005 como ano base. Como contribuição subsequente, apresentou a meta de redução de 43% abaixo dos nÃÂveis de emissão de 2005, para o ano de 2030 (MMA, 2015).

    Na COP 26, realizada no ano de 2021 em Glasgow (Escócia), o Brasil atualizou suas contribuições e propôs mitigar 50% de suas emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2030 e apresentou uma agenda estratégica voltada àneutralidade climática até 2050. Nessa atualização o paÃÂs assume os seguintes compromissos: a) zerar o desmatamento ilegal até 2028; b) restaurar e...

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