As obras e os dias de Hans Kelsen, o jurista do seculo.

AutorLosano, Mario G.

Sumário: 1. Uma biografia monumental de Hans Kelsen, 1881-1973; 2. >: a infância, os estudos e a Primeira Guerra Mundial; 3.

>: a ascensão e a queda de Kelsen; 4. >: o inÃÂcio do múltiplo exÃÂlio de Kelsen; 5. >: o ensino em Berkeley e as obras da velhice; 6. Conclusão: a memória e a presença de Kelsen, hoje.

  1. Uma biografia monumental de Hans Kelsen

    Se na pesquisa cientÃÂfica existisse o conceito de "definitivo", a biografia de Hans Kelsen escrita por Thomas Olechowski deveria ser considerada a biografia definitiva do maior jurista do século XX1. De fato, ela cobre toda a trajetória da longa vida de Kelsen, e, nela, insere a vasta produção cientÃÂfica no fluir dos eventos tanto de sua vida pessoal quanto da conturbada história do século XX: com efeito, a vida de Kelsen--que se estendeu de 1881 a 1973--

    > daqueles anos (p. 20). Biografia nada fácil, ademais, porque > (2).

    A publicação da biografia de Kelsen vem àluz em 2020, um ano significativo para a Áustria: > (3), embora Olechowski esclareça que >.

    Desde a primeira página, Thomas Olechowski ressalta que sua obra não pretende reconstruir o desenvolver-se da teoria pura do direito, nem os debates que a acompanharam, e sim a vida, e, portanto, as obras de Kelsen. Olechowski descreve a abordagem de seu trabalho da seguinte forma:

    O objeto da presente investigação é de natureza não teórico-jurÃÂdica, e sim histórico-jurÃÂdica: em seu centro está, portanto, não a teoria pura do direito, mas o seu criador, isto é, o próprio Kelsen. Descreve-se o seu percurso existencial--que o levou de Praga a Viena, a Colônia, a Genebra e a outras paradas ainda, até a Califórnia-- relacionando-o com os eventos históricos gerais de 1881 a 1973. É esse o contexto em que é apresentada a produção kelseniana, cujas principais obras são examinadas. Dessa forma, em muitos casos evidencia-se--mais claramente do que até agora na literatura sobre Kelsen--o porquê de ele ter enfrentado certos temas, ou o que o induziu a formular algumas teses de certo modo e não de outro. Nesse sentido, o presente volume constitui efetivamente um contributo para uma melhor compreensão da obra cientÃÂfica de Kelsen (p. VII). Em 2003, Olechowski recebeu o incentivo para preparar uma biografia geral de Kelsen: naquele ano, com efeito, decidiu-se iniciar a publicação das obras completas de Hans Kelsen (as Hans Kelsen Werke, chegadas hoje ao sétimo volume (4)), e antepor ao primeiro tomo uma biografia de Kelsen. É nesse ano que Olechowski iniciou sua obra; porém, a exigência editorial de oferecer uma biografia kelseniana como abertura do primeiro volume das obras completas levou a lhe antepor um valoroso compêndio biográfico, depois traduzido também ao italiano (5).

    Ainda que mais autores se tenham ocupado de alguns aspectos da vida de Kelsen, até agora a única completa e autorisierte Biographie de Kelsen havia sido publicada por seu amigo e ex-assistente Rudolf Aladár Métall (6), que se fundava em alguns escritos autobiográficos do próprio Kelsen, bem como em seus numerosos colóquios tidos com ele. Olechowski, no entanto, observa que > (p. 2 s.), porque ele os resgata das próprias recordações sobre eventos então ocorridos há décadas. Uma vez que Métall se refere àquelas páginas autobiográficas, os erros ou as imprecisões se repetem também na biografia escrita por ele. Uns e outras são corrigidos por Olechowski, e esse é um mérito a mais do volume em exame. Enfim, numerosos escritos que ilustram algum aspecto especÃÂfico da vida de Kelsen são comentados em um item àparte (pp. 8-13).

    A riqueza dessa vasta biografia cultural abre também alguma perspectiva inesperada sobre a quotidianidade de Kelsen que, por exemplo, depois de uma jornada sobre os livros, revigorava-se com um copo de cerveja escura no Perkeo, un célebre local de Heidelberg (p. 110), ou que, no seu gabinete em Berkeley, ao lado do retrato de Kant havia uma foto de Liz Taylor (p. 859).

    O volume de Olechowski apresenta uma estrutura complexa--resultado inevitável das mais de mil páginas de texto--, mas clara: divide-se em quatro partes (7), cada uma compreende de três a cinco capÃÂtulos, por sua vez subdivididos em itens e subitens. Assim organizado, o ÃÂndice cobre dez páginas e pode, então, explicar o fato de que o presente comentário àobra seja pouco mais do que aquele ÃÂndice parcimoniosamente encorpado. Por isso, seguindo a abordagem do volume, as páginas que seguem são divididas em itens que (salvo o inicial e o final) trazem um tÃÂtulo coincidente com cada uma das quatro partes da obra de Olechowski. As presentes páginas fornecem uma sÃÂntese apertada de todo o volume e, ao mesmo tempo, um itinerário cronológico da vida de Kelsen, que o leitor pode aprofundar recorrendo às páginas do original de Olechowski, indicadas vez por outra entre parêntesis. O item final do presente escrito oferece uma avaliação abrangente dessa biografia que é tanto um monumento a Kelsen, como se lê no tÃÂtulo da resenha escrita por Sabino Cassese, quanto >, como a definiu Horst Dreier (8).

  2. >: a infância, os estudos e a Primeira Guerra Mundial

    A famÃÂlia de Kelsen deita suas raÃÂzes na GalÃÂcia austro-húngara, de onde provinham muitas famÃÂlias judias daquele império. Da cidade de Brody, o pai de Kelsen se transferiu a Viena pouco depois de meados do século XIX, assimilando-se ao contexto germânico e alterando o próprio nome: Abraham Kelsen tornou-se Adolf Kelsen, e todos os filhos receberam nomes germânicos. Em Viena, casou-se com Auguste Löwy e logo se transferiu para Praga, onde, em 1881, nasceu Hans Kelsen. A famÃÂlia retornou a Viena em 1885, e nesta cidade teve lugar a formação cultural de Hans Kelsen, das escolas elementares àuniversidade. Todo o percurso escolar de Hans Kelsen é reconstruÃÂdo nos mÃÂnimos detalhes, das etapas elementares nos ensinos fundamental e médio até a formatura, concluÃÂda em 1900 > (p. 57): Kelsen nunca foi um estudante modelo.

    O serviço militar obrigatório era oneroso, mas previa uma vantagem para quem havia terminado o ensino médio e se alistava como voluntário: após um ano de serviço na ativa, passava-se àreserva como oficial. Esse foi o caminho escolhido por Kelsen. Aquele ano de mudanças radicais nos hábitos representou para Kelsen, como para muitos dos de sua geração, um momento em que amadureceram as escolhas fundamentais para o seu futuro: decidiu, de fato, não entrar na faculdade de filosofia (que então compreendia também matemática e fÃÂsica), mas se inscrever na de direito. Nela se apresentou, com efeito, em outubro de 1991, logo que dispensado do exército.

    A Universidade de Viena não previa a obrigatoriedade de presença, e Kelsen (que em sua autobiografia atesta a pouca consideração em que tinha não poucos de seus docentes) frequentou pouco as aulas, dedicando-se, em vez disso, a leituras sobretudo filosóficas. Algumas personalidades, porém, influenciaram a sua formação: os juspublicistas Edmund Bernatzik e, sobretudo, Adolf Menzel, > (p.75), inclusive quando Kelsen precisou enfrentar um procedimento disciplinar na Universidade de Viena, no contexto de sua polêmica com Fritz Sander (9). Aos juspublicistas, somava-se o poliédrico filósofo Otto Weininger, suicida aos vinte e três anos e amigo próximo de Kelsen, que definiu Weininger como >.

    Uma relevante influência intelectual e o estÃÂmulo a escrever seu primeiro trabalho cientÃÂfico vieram do historiador da filosofia do direito Leo Strisower, também ele proveniente de Brody e casualmente suplente em um curso no qual Kelsen estava inscrito. Com ele, Kelsen tomou conhecimento da existência do De Monarchia de Dante, e, a partir dessa obra, escreveu seu primeiro livro, A teoria do Estado em Dante Alighieri (10), publicado em 1905 em uma coleção cientÃÂfica organizada por Edmund Bernatzik, quando o Kelsen dos vinte e quatro anos ainda não havia sido aprovado no exame de doutorado.

    Naquele mesmo ano, Kelsen se converteu ao catolicismo: um passo comum (ainda que não obrigatório) a muitos de seus correligionários, inclusive tendo em vista uma futura atividade na administração pública. Kelsen nunca se expressou sobre as razões que o induziram a esse passo. Olechowski descreve em detalhe o contexto em que ocorreu essa conversão e conclui: (p. 87). Para compreendê-la, convém também recordar que o antissemitismo não havia desaparecido na Áustria, embora houvesse sido amenizado o estigma social dos judeus. Terminados os estudos, quando Kelsen participou de um concurso para um cargo na reitoria, recebeu esta resposta: > (p. 91).

    Entre 1905 e 1906, a formação universitária de Kelsen se concluiu com a série de exames prevista pelo ordenamento acadêmico da época: "insuficiente" em direito comercial e "suficiente" em direito civil, penal e processual civil. O sucessivo Rigorosum de direito público teve lugar no semestre seguinte: também dessa vez, "suficiente". O resultado do último Rigorosum de história do direito foi um pouco melhor: "suficiente mais" e "excelente menos". > (p. 90).

    Kelsen, então, devia escolher uma carreira profissional, tendo em vista que a sua qualidade de judeu convertido podia constituir um obstáculo. Seu interesse se voltou, primeiro, a profissões jurÃÂdicas como a de magistrado ou a de advogado, e apenas em um segundo momento optou pela carreira de docente universitário. Enquanto isso, continuava a publicar, com o apoio daqueles que haviam sido seus docentes e seguindo os temas mais debatidos no direito público...

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