As pessoas com deficiência mental e o consentimento informado nas intervenções médicas

AutorGustavo Pereira Leite Ribeiro
Ocupação do AutorDoutor em Direito Privado. Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal de Lavras ? UFLA
Páginas827-859
As pessoas com deficiência mental e o
consentimento informado nas intervenções médicas1
Gustavo Pereira Leite Ribeiro*
1. Introdução
No último censo demográfico brasileiro,2 foram contabilizados pouco
mais de 190 milhões de pessoas, entre as quais cerca de 45 milhões decla-
raram possuir, ao menos, uma das deficiências investigadas, o que repre-
sentava 23,9% da população brasileira. Se afastando do enfoque médico da
deficiência, a pesquisa censitária se baseou na percepção dos informantes
sobre suas dificuldades permanentes para enxergar, ouvir e caminhar ou
subir escadas, mesmo com o auxílio de óculos ou lentes de contato, apare-
lho de audição, bengala ou prótese. Quem relatou algum nível de dificulda-
de foi considerada pessoa com deficiência. A deficiência visual registrou
maior frequência (18,6%), seguida pelas deficiências motora (7,0%) e audi-
tiva (5,1%).3-4
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1 O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq) – Processo nº
426276/2016-7.
* Doutor em Direito Privado. Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade
Federal de Lavras – UFLA. Líder do Laboratório de Bioética e Direito – LABB/UFLA,
cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Presidente da Associação
Mineira de Professores de Direito Civil – AMPDIC. Ex-bolsista CAPES/PDSE.
2 Todos os dados mencionados podem ser encontrados em INSTITUTO BRASI-
LEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010: característi-
cas gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE,
2012.
3 A análise oficial dos dados foi alvo de críticas, especialmente por considerar pessoa
com deficiência aquela que apresentasse qualquer dificuldade para enxergar, ouvir e
caminhar ou subir escadas, pois, desse modo, por um lado, inflava a condição da defi-
ciência, incorporando, por exemplo, parcela significativa dos idosos e, por outro, difi-
cultava a comparabilidade entre os países que produziam estatísticas sobre a temática.
Seguindo as recomendações do Grupo de Washington, o Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE), em 2018, promoveu uma releitura dos referidos dados,
Também se buscou mensurar a ocorrência da deficiência mental (1,4%),
incluindo apenas as pessoas que encontravam dificuldades para realizar ati-
vidades habituais – comunicar com outros, cuidar de si mesma, realizar ta-
refas domésticas, brincar, aprender, trabalhar – em razão de retardo no de-
senvolvimento intelectual, não importando, neste caso, a gravidade dos obs-
táculos enfrentados. Foram, com efeito, excluídas as pessoas acometidas
por uma variedade de doenças mentais, como esquizofrenia, neurose, psico-
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adotando nova linha de corte. Além daquelas que relataram alguma dificuldade para
realizar atividades habituais em razão de retardo no desenvolvimento intelectual, in-
cluíram-se entre as pessoas com deficiência somente aquelas que não conseguiam en-
xergar, ouvir e caminhar ou subir escadas, mesmo com o auxílio de óculos ou lentes de
contato, aparelho de audição, bengala ou prótese, assim como aquelas que encontra-
vam grande dificuldade na execução destas tarefas. Desse modo, foram excluídas do
universo das pessoas com deficiência aquelas que informaram apenas alguma dificulda-
de para enxergar, ouvir e caminhar ou subir escadas. O número de pessoas com defi-
ciência passou a girar em torno de 12,7 milhões, o que representava 6,7% da população
brasileira. O impacto da nova linha de corte foi mais significativo na deficiência visual,
mas não deixou de ser relevante nas deficiências motora e auditiva. Foram contabiliza-
dos aproximadamente: 6,6 milhões de pessoas com deficiência visual; 4,4 milhões de
pessoas com deficiência motora; 2,6 milhões de pessoas com deficiência mental; e 2,1
milhões de pessoas com deficiência auditiva. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEO-
GRAFIA E ESTATÍSTICA. Nota Técnica nº 01/2018: releitura dos dados de pessoas
com deficiência no Censo Demográfico 2010 à luz das recomendações do Grupo de
Washington. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.
4 Convém assinalar que a nova interpretação dos dados se alinha com os resultados
da última Pesquisa Nacional de Saúde, realizada entre os meses de agosto de 2013 e
fevereiro de 2014. Em sua quarta edição quinquenal, sob os auspícios do Ministério da
Saúde (MS) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Pesquisa
Nacional de Saúde pretendeu analisar o desempenho do sistema nacional de saúde, as
condições de saúde da população brasileira e a vigilância das doenças crônicas não
transmissíveis e os fatores de riscos associados, de modo a oferecer subsídios para for-
mulação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas. Para amostra, foram sele-
cionados 85.254 domicílios, que resultaram em 64.348 entrevistas, com informações
válidas para 205.000 moradores. Em 2013, estimou-se cerca de 12,4 milhões de pes-
soas com deficiência, representando aproximadamente 6,2% da população brasileira,
calculada ao redor de 200,6 milhões de indivíduos. Destaque-se que a deficiência foi
considerada como impedimento de estruturas e funções do corpo, ficando a sua iden-
tificação à cargo do informante. Entretanto, buscou-se avaliar em que medida restava
comprometida a realização de atividades habituais por pessoas com deficiência, o que
tornam os resultados úteis ao presente trabalho. A limitação para realização de ativida-
des habituais foi classificada em cinco níveis, partindo da ausência de limitação até a
limitação muito intensa, incluindo, neste caso, a impossibilidade de realizar atividades
habituais. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa
Nacional de Saúde 2013: ciclos de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 2015.
se e autismo. Por isso, estima-se que o número de pessoas com deficiência
mental seja superior ao apresentado, considerando-se, ainda, o processo de
envelhecimento da população.
A pesquisa demográfica evidenciou outros dados interessantes. A defi-
ciência mental atinge pessoas em qualquer idade, mas possui maior incidên-
cia entre os idosos: 0,9% das crianças e dos adolescentes entre 0 a 14 anos;
1,4% dos jovens e dos adultos entre 15 a 64 anos; 2,9% dos idosos com 65
anos ou mais. São 54% homens e 46% mulheres.
Com repercussão nos cuidados de saúde e no acesso aos serviços médi-
cos, chama atenção o precário nível de instrução das pessoas com deficiên-
cia, assim como os seus desfavoráveis indicadores no mercado de trabalho.
A título ilustrativo, 47% das pessoas com deficiência mental não eram alfa-
betizadas. A participação das pessoas com deficiência no mercado de traba-
lho era tímida, mormente das pessoas com deficiência mental: cerca de 55%
das pessoas com deficiência em idade ativa estavam desocupadas, alcançan-
do 82% das pessoas com deficiência mental. Em termos de rendimento
mensal, impressiona a temerária situação das pessoas com deficiência men-
tal: 18,9% não recebia remuneração; 43,8% recebia até 1 salário mínimo;
22,9% recebia entre 1 e 2 salários mínimos.
A aprovação da Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência,
realizada por meio do Decreto Legislativo nº 186/2008, e a sanção da Lei nº
13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ampliam
os horizontes dessas pessoas que compõem significativa parcela da popula-
ção brasileira.
Diante do novo marco jurídico, reconhece-se que a deficiência é um fenô-
meno multidimensional, em constante evolução e que resulta da interação en-
tre as diversas barreiras socioambientais e as limitações individuais da pessoa,
comprometendo a plena e efetiva participação na vida em sociedade.5 Sob ins-
piração dos princípios da não-discriminação e da igualdade de oportunidades,
determina-se a criação de mecanismos de apoio adequados ao exercício de di-
reitos pela pessoa com deficiência nos mais variados espaços e situações.6
Neste capítulo, pretende-se discutir a participação da pessoa com defi-
ciência mental nos processos decisórios relativos aos seus cuidados de saú-
de. Como se apresentará, estudos empíricos comprovam que a deficiência
mental não é suficiente para desencadear uma presunção de incapacidade
decisória. Diversas pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, demência,
depressão, entre outras enfermidades, mantém as habilidades cognitivas ne-
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5 PALACIOS, Agustina; BARIFFI, Francisco. La discapacidad como una cuestión
de derechos humanos. Madrid: Cinca, 2007, p. 57-66.
6 CISTERNAS REYES, María Soledad. Desafíos y avances en los derechos de las
personas con discapacidad: una perspectiva global. Anuário de Derechos Humanos.
Santiago, v. 11, n. 11, 2015, p. 27-29.

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