Violência obstétrica contra a gestante com deficiência

AutorAline de Miranda Valverde Terra e Ana Carla Harmatiuk Matos
Ocupação do AutorProfessora do Departamento de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio/Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre em Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía
Páginas915-939
Violência obstétrica contra a gestante
com deficiência
Aline de Miranda Valverde Terra*
Ana Carla Harmatiuk Matos**
1. Introdução
Em 2006, aos sete meses degestação, a bolsa estourou. Eva se dirigiu à
maternidade, onde ficou internada por dois dias, e encaminhada para casa.
Ao retornar ao hospital, três dias depois, de acordo com a orientação que
recebera, foi recebida com agressões eacusações: “Por que não veio mais
cedo?”, “Queria forçar um parto normal?”, “Quem manda no procedimento
sou eu”. Eva foi então encaminhada à sala de cirurgia, e ouviu de um dos
profissionais que a atendiam que iria “arcar com as consequências” de suas
escolhas. A equipe médica tentou realizar a manobra de Kristeller, e uma
das enfermeiras, sem a consultar, deitou sobre sua barriga. Eva reagiu ao
procedimento, e teve suas mãos amarradas. O bebê não sobreviveu. A mãe
* Professora do Departamento de Direito Civil da UERJ e da PUC-Rio.Professora
Permanente do Programa de Pós-graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da
UERJ. Doutora e Mestre em Direito Civilpela UERJ.Coordenadora editorial da Revis-
ta Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Associada fundadoraao Instituto Brasileiro de
Direito Civil – IBDCivil e associada à Association Henri Capitant des Amis de la Cul-
ture Juridique Française. Membro da Comissão de Direito Civil da OAB/RJ. Advoga-
da.
** Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre em
Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía. Tutora in Diritto na
Universidade di Pisa-Italia. Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Vice-Coordenadora do Programa de Pós-gradua-
ção em Direito da Universidade Federal do Paraná. Vice-Presidente do IBDCivil. Di-
retora Regional-Sul do IBDFAM.
915
ouviu que a morte de seu filho ocorrera por ela ter “forçado” o parto. Eva
sequer teve acesso ao prontuário médico.1
Esse é apenas um relato chocante em meio a milhares de outros que
retratam uma lamentável realidade,que afeta uma em cada quatro mulheres
no Brasil.2 Aviolência obstétrica, prática abusiva contra as gestantes que, a
despeito de não ser recente,3 começa a ganhar a atenção, cada vez maior,
dos juristas nacionais.
Este artigo se propõe, com efeito, a analisar a violência obstétrica contra
um grupo particular de gestantes: aquelas com deficiência. Para tanto, veri-
ficar-se-á como o modelo médico de deficiência contribuiu para a adoção,
pela codificação civil de 1916 e 2002, de um modelo abstrato de incapaci-
dade, e como esse modelo conduziu à despersonificação das pessoas com
916
1 O episódio é narrado em reportagem da Revista Época, sob o título “Vítimas da
violência obstétrica: o lado invisível do parto”, de autoria de Thais Lazzarei. Disponível
em: https://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/vitimas-da-violencia-obstetrica-
o-lado-invisivel-do-parto.html. Acesso em 3.9.2018.
2 “25% das mulheres entrevistadas afirmaram ter sofrido alguma formade violência
institucional, desatacando-se a realização de exame de toque doloroso e negativapara
alívio da dor (10%), ausência de explicação quanto aos procedimentos adotados e gri-
tos de profissionais durante o atendimento (9%), negativa de atendimento (8%) e xin-
gamento e humilhações (7%). Ainda, a pesquisa apontou que cerca de 23% das entre-
vistadas sofreram coação verbal pelos profissionais, por meio de frases como não chora
que ano que vem você está aui de novo(15%), na hora de fazer não chorou, não chamou
a mamãe (14%), se gritar eu paro e não vou te atender (6%), se ficar gritando vai fazer
mal pro neném, ele vai nascer surdo (5%)”. Dados extraídos da pesquisa Mulheres Bra-
sileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, divulgada em 2010 pela Fundação
Perseu Abramo, p. 173 e seguintes. Disponível em https://apublica.org/wpcon-
tent/uploads/2013/03/www.fpa_.org_.br_sites_default_files_pesquisaintegra.pdf.
Acesso em 5.9.2018.
3 A título de exemplo, confira-se o seguinte trecho de Henci Goer, que remete a
artigo publicado há mais de 50 anos, nos Estados Unidos, acerca da violência obstétrica
que então já se verificava: “‘Cruelty in Maternity Wards’ was the title of a shocking
article published just over 50 years ago in Ladies’ Home Journal in which nurses and
women told stories of inhumane treatment in labor and delivery wards during child-
birth (Schultz, 1958). Stories included women being strapped down for hours in the
lithotomy position, a woman having her legs tied together to prevent birth while her
obstetrician had dinner, women being struck and threatened with the possibility of
giving birth to a dead or brain damaged baby for crying out in pain, and a doctor cutting
and suturing episiotomies without anesthetic (he had once nearly lost a patient to an
overdose) while having the nurse stifle the woman’s cries with a mask” (HENCI,
Goer. Cruelty in maternity wards: fifty years later. The Journal of Perinatal Educa-
tion.2010. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2920649
/?tool=pmcentrez&report=abstract#bib24. Acesso em 5.9.2018).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT