Planos de saúde e Pessoas com Deficiência: acesso, desenvolvimento sustentável e autodeterminação

AutorGabriel Schulman
Ocupação do AutorDoutor em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas861-893
Planos de saúde e Pessoas com Deficiência: acesso,
desenvolvimento sustentável e autodeterminação
Gabriel Schulman
AS INDAGAÇÕES
A resposta certa, não importa nada: o essencial
é que as perguntas estejam certas.
Mario Quintana
1. Pessoa, saúde e desenvolvimento sustentável em perspectiva: con-
textualização e recorte proposto
Gradativamente se fortalecem os laços entre pessoa, saúde e direito. Na
trilha de uma leitura humanista e inclusiva, alinhada com as premissas cons-
titucionais da igualdade material, pluralidade, efetivo acesso,1 o Brasil esta-
* Doutor em Direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre
em Direito pela (UFPR). Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de
Coimbra (Portugal). Coordenador da Pós-Graduação em Direito e Saúde da Universi-
dade Positivo. Professor da Universidade Positivo. Especialista convocado na CPI dos
Planos de Saúde. Autor de diversos estudos sobre o tema, entre os quais, a obra Planos
de Saúde: Contrato e Saúde na contemporaneidade. Parecerista e Advogado. Agrade-
ço pelo diálogo para elaboração do texto, em especial aos professores Ricardo Calde-
rón, Ricardo Tadeu Fonseca, Rafael Zanlorenzi e à pesquisadora Ana Carolina Contin
Kosiak.
1 Eroulths CORTIANO Jr. refere-se a quatro fundações do direito civil. Em primei-
ro o jus civile o qual “referenciava o indivíduo submetido à regulação jurídica estatal”.
Em segundo, “o reconhecimento progressivo e a recepção da Recopilação de Justiniano
permitem fundar uma ordem em que puderam integrar-se o mercado e o poder políti-
co”. A terceira fundação diz respeito à Modernidade, em que prevaleceu a liberdade e
igualdade abstratas, a sociedade “marcada pelo mercado”. No que mais interessa a re-
flexão que aqui se propõe, finaliza sublinhando “A quarta fundação do direito civil está
em construção: é a fundação de um direito civil de acesso. Um direito civil de dignida-
de”. CORTIANO Jr., Eroulths. As quatro fundações do Direito Civil: ensaio preliminar.
Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 45, p. 99-102, 2006. p. 100, 102.
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beleceu uma disciplina especial para a pessoa com deficiência, ainda que a
prática esteja bastante distante das promessas legislativas.
Merecem singular destaque, por seu potencial emancipatório, o Estatu-
to da Inclusão da Pessoa com deficiência (Lei n. 13.146/2015) e à Conven-
ção de Nova York (Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência), promulgada por meio do Decreto n. 6.949/2009 e recep-
cionada com status de emenda constitucional, na forma do art. 5º, §3º, da
Ta is di plo mas lega is r eper cut em de mod o rel eva nte na saúd e. N esse h o-
rizonte, à luz da leitura conforme a Constituição, o presente estudo preten-
de analisar os impactos nos planos de saúde, enfocando o direito de contra-
tar e uma breve referência à autodeterminação do paciente.
A exposição adota duas premissas fundamentais. Em primeiro, a impor-
tância do diálogo entre Saúde e Direito, tendo em conta que o seu destino
comum, “direto e imediato, é a pessoa humana”2. Em segundo, prima-se
pela recepção do princípio da dignidade da pessoa como norte da interpre-
tação jurídica3, de sorte a proteger a pessoa concreta4, em suas múltiplas
projeções e na sua singularidade. Sob essas lentes, passa-se a analisar alguns
direitos da pessoa com deficiência física.
Compõe o quadro legislativo, farta legislação sobre a pessoa com defi-
ciência5 que se expandem em muitos ramos.6 Deve-se ter em conta ainda,
entre tantos outros diplomas, o Código de Defesa do Consumidor7, a Lei
dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/98) e todo o acervo de normas infralegais
que regulam este contrato. É preciso recordar, inicialmente que o setor de
planos de saúde ou saúde suplementar,8 é um setor cuja estruturação é re-
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2 VADILLO, Enrique Ruiz. Derecho y Salud, Barcelona (Espanha), v. 1, n. 1, p.
1-2, jul./dez. 1993.
3 TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspecti-
va civil-constitucional. 2. ed. São Paulo: Renovar, 2003.
4 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2000.
5 Entre outras: Lei n. 10.2016/2001 (Lei de Saúde Mental); Lei n. 7.853/1989, a
qual dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Defi-
ciência. (Para outras normas: BRASIL. Legislação brasileira sobre pessoas com defi-
ciência. 7. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013.
6 “O estudo do direito não deve ser feito por setore s pré-constituídos, mas por pro-
blemas, com especial atenção às exigências emergentes”. PERLINGIERI, Pietro. Per-
fis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 55.
7 STJ, Súmula 608 – “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos
de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
8 Como aponta o Ministro Marco Aurélio de Mello: “A esse cenário devem-se somar
cente, com uma agência reguladora relativamente “jovem”, a ANS, criada
Ademais, durante muito tempo, permitiu-se que fossem conjugadas
com as barreiras físicas, óbices jurídicos, criando dificuldades desnecessá-
rios. Progressivamente, os obstáculos são mitigados, tanto na arquitetura
das edificações, como das legislações, concretizando e efetivando os precei-
tos da igualdade e da dignidade humana.
Em sintonia com tal perspectiva, o Estatuto da Inclusão da Pessoa com
deficiência (Lei n. 13.146/2015), abreviado frequentemente como EPD, é
fruto de uma ótica de acolhimento, de celebração das diferenças, de busca
pelo efetivo acesso. O diploma legal intencionou claramente por primar
pela valorização da pessoa, como denota o afastamento do modelo binário –
incapaz ou capaz – que desconsiderava por completo as manifestações de
vontade dos ditos incapazes e as nuances da vida concreta.
Sob a égide da Modernidade clássica, a autonomia tutelada dizia respei-
to estritamente a uma liberdade negocial, pouco importando a pessoa por
detrás do sujeito de direito9 que integrava uma relação jurídica abstrata.
Nas palavras de RODOTÀ:
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a crescente especialização da medicina e o incremento dos gastos alusivos a tais presta-
ções. Embora a carga tributária brasileira esteja entre as maiores do mundo, aparente-
mente, os custos da medicina curativa e preventiva têm superado os limites suportá-
veis, mesmo dos Estados que destinam grande parte dos respectivos orçamentos à te-
mática. Gustavo Amaral, revisando literatura especializada, aponta o aumento expo-
nencial dos gastos com saúde pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, previra-se,
em estudo datado de 2005, que 11% do Produto Interno Bruto daquele país seriam
gastos no setor no ano de 2035, mas, em 2010, o percentual chegou a impressionantes
17,9%. Todos esses elementos – deficiência crônica no setor público, avanço vertigino-
so dos tratamentos e incremento dos custos – alavancam a importância do setor de
saúde suplementar, fundamental para o equacionamento do problema. Observem a
definição do termo consignada por Gabriel Schulman: Entende-se por “saúde suple-
mentar” a esfera de atuação dos planos de saúde. A locução denomina, por conseguin-
te, a prestação de serviços de saúde, realizada fora da órbita do Sistema Único, vincu-
lada a um sistema organizado de intermediação mediante pessoas jurídicas especializa-
das (operadoras de planos de saúde). Em palavras mais adequadas às interfaces entre
público e privado, a saúde suplementar configura a prestação privada de assistência
médico-hospitalar na esfera do subsistema da saúde privada por operadoras de planos
de saúde”. MELLO, Marco Aurélio. Saúde suplementar, segurança jurídica e equilíbrio
econômico-financeiro. In: Planos de saúde: Aspectos Jurídicos e Econômicos. Rio de
Janeiro: Forense. 2012. p. 4.
9 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e li-
berdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da famí-
lia. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 162). Tratava-se de “sujeito de direito abstratamente

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