Por que as pessoas entram na justiça?

AutorNatália Ribeiro Machado Vilar
Páginas27-73
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POR QUE AS PESSOAS
ENTRAM NA JUSTIÇA?
“Ver para prever, a m de prover”.
Auguste Comte
Como visto no capítulo anterior, as pessoas são complexas, e suas decisões
podem ser resultado de inúmeras variáveis, que estão além da perfeita e ilimitada
racionalização entre as opções disponíveis.
As características humanas não podem ser ignoradas pelas mais diversas áreas
do conhecimento. Porém, é comum, com a f‌inalidade de tornar a ciência pura e livre
de interferências1, que os cientistas isolem, de seu objeto de estudo, alguns elementos
subjetivos e fatores externos. Essa ação, no entanto, pode gerar um descuido com o
que há de mais elementar às ciências sociais: o fator humano, no contexto em que
inserido.
A litigiosidade no Brasil é um fenômeno multifacetado. Entende-se que nenhu-
ma ciência isolada poderia explicar todas as suas peculiaridades. Assim, no contexto
do interesse interdisciplinar da pesquisa realizada para este trabalho, e para uma
melhor compreensão sobre as questões que a envolvem, é pertinente estabelecer
alguns contornos da comunicação entre economia e direito.
2.1 O “ESTADO DA ARTE” DA ECONOMIA E A ANÁLISE ECONÔMICA DO
DIREITO
A economia é um método que pode ser aplicado aos mais variados ramos do
conhecimento humano (JORDÃO; ADAMI, 2004). Contemporaneamente, é possível
dizer que a ciência econômica engloba toda forma de comportamento humano que
requer tomada de decisão.
1. Hans Kelsen (2003), por exemplo, trouxe uma grande contribuição à ciência do direito com a “Teoria Pura
do Direito”. A partir dela, construiu-se uma ciência livre de julgamentos morais ou políticos e formulou-se
um sistema normativo de interpretação bastante em si (COELHO, 1999). No âmbito do direito processual,
Oskar Bullow também precisou isolar a matéria relacionada ao processo. Sua obra, “A Teoria das Exceções
e os Pressupostos Processuais”, inaugurou a fase científ‌ica do direito processual, trazendo-lhe status de
instituto autônomo e independente do direito material. Tornou possível, assim, a sistematização do estudo
do direito processual (BÜLOW, 1964; CASTILLO, 1947).
COMPORTAMENTO LITIGIOSO • NATÁLIA RIBEIRO MACHADO VILAR
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No entanto, o comportamento humano não é o objeto específ‌ico em si da eco-
nomia, pois ela se caracteriza por ser um método de investigação (GICO JR, 2010).
Lord Robbins (1984) a def‌ine da seguinte forma: “a economia é a ciência que estuda o
comportamento humano como uma relação entre f‌ins e meios escassos que possuem
usos alternativos”2 (p. 16). Portanto, nessa perspectiva, as atividades humanas são
passíveis de uma abordagem econômica.
Essa abordagem pode ser feita nos mais variados âmbitos. Quando se aplica
a abordagem econômica na tentativa de compreender o ordenamento jurídico,
promove-se uma interação entre direito e economia. No Brasil, convencionou-se
denominar essa interação de “análise econômica do direito” (AED).
A Análise Econômica do Direito nada mais é que a aplicação do instrumental analítico e empí-
rico da economia [...], para se tentar compreender, explicar e prever as implicações fáticas do
ordenamento jurídico, bem como da lógica (racionalidade) do próprio ordenamento jurídico.
Em outras palavras, a AED é a utilização da abordagem econômica para tentar compreender o
direito no mundo e o mundo no direito (GICO JR, 2010, p. 18).
A análise econômica do direito pode ser considerada uma ferramenta, um
modo de analisar o direito a partir dos instrumentos que a economia oferece. Sob
esse viés, o ordenamento jurídico é compreendido como um sistema de incentivos,
cabendo ao intérprete considerar as consequências decorrentes das normas e de sua
aplicação concreta.
De acordo com essa concepção, o direito é “um conjunto de regras que esta-
belecem custos e benefícios para os agentes que pautam seus comportamentos em
função de tais incentivos” (GICO JR, 2010, p. 21).
Na análise econômica do direito, a ref‌lexão acerca de quais incentivos se pre-
tende estabelecer “envolve um método científ‌ico dedutivo. Ou seja, def‌ine situações
e comportamentos hipotéticos mesmo antes de verif‌icar a sua efetiva existência”
(JORDÃO; ADAMI, 2004, p. 195). Desse modo, é possível identif‌icar o compor-
tamento dos agentes (diagnóstico), e conjecturar-se sobre as reações (prognose)
(GICO JR, 2010).
A coleta de dados reais não é a parte mais importante da abordagem econômica
do direito, mas sim a capacidade preditiva de antever condutas diante dos estímulos
normativos (JORDÃO; ADAMI, 2004). Alterar a realidade é possível por meio da
modif‌icação da estrutura de incentivos, que, no direito, pode se dar com uma mo-
dif‌icação legislativa ou jurisprudencial, por exemplo (GICO JR, 2010).
A ciência do direito foi construída sobre a análise da norma, sua incidência e
consequências. Assim, não tem ferramentas para a investigação do comportamento
humano e da tomada de decisão, a partir de um sistema de incentivos. Para tanto, é
2. No original: “Economics is the science which studies human behaviour as a relationship between ends
and scarce means which have alternative uses”.
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2 • POR QUE AS PESSOAS ENTRAM NA JUSTIÇA?
possível se valer da teoria econômica, cujo objeto é justamente a tentativa de previsão
do comportamento dos agentes e de suas reações, diante das mudanças ocorridas
na estrutura de incentivos (GICO JR, 2010).
Para a adoção do método econômico, é preciso compreender alguns de seus
postulados. Um deles é a escassez, que signif‌ica que os recursos da sociedade são
limitados, impondo a necessidade de escolha dentre alternativas excludentes. Para
Ivo Gico Jr. (2010), a mesma ideia justif‌ica o direito: “se os recursos não fossem
escassos, não haveria conf‌lito, sem conf‌litos, não haveria necessidade do direito”
(p. 22). Embora não se entenda de forma absoluta que o direito se fundamenta ex-
clusivamente na escassez, não se pode deixar de reconhecer que a escassez é a causa
de diversos conf‌litos e da necessidade de aplicação do direito.
Se a escassez impõe uma escolha, isso signif‌ica que a opção escolhida acarreta a
renúncia de outra alternativa. Na economia, denomina-se essa alternativa abdicada
de custo de oportunidade (trade off), “que é exatamente a segunda alocação factível
mais interessante para o recurso, mas que foi preterida” (GICO JR, 2010, p. 22).
Quando alguém opta por ler um livro em vez de assistir a um f‌ilme, o custo de
oportunidade é a renúncia da opção de assistir a um f‌ilme. Diante da impossibilidade
de fazer as duas coisas ao mesmo tempo (escassez), é preciso fazer uma escolha.
Para aquela alternativa a que se renunciou (ou seja, a segunda melhor opção, que,
no caso, era assistir a um f‌ilme), denomina-se custo de oportunidade.
Essa mesma ideia pode ser usada na realização de direitos fundamentais por
parte do Estado, haja vista as inúmeras demandas e a escassez dos recursos. Assim,
quando o Poder Público resolve alocar dinheiro na compra de uma vacina em vez de
na compra de um medicamento, toma uma decisão baseada na escassez dos recursos.
Essa decisão é realizada após a ponderação entre o benefício da alternativa eleita e
o custo de oportunidade da alternativa abdicada. A essa decisão, convencionou-se
denominar, na economia, de “conduta do agente racional maximizadora”.
Ora, se, na tomada de decisão, os agentes ponderam os custos e benefícios de
suas alternativas, é possível concluir que levam em conta a estrutura de incentivos.
Portanto, se a realidade fosse outra, os incentivos também poderiam ser diferentes,
conduzindo o agente a pensar de outro modo e a realizar outra escolha. Logo, as
pessoas respondem a incentivos, e os incentivos podem estar presentes em qualquer
contexto ou estrutura, como no sistema jurídico.
Todo o direito é construído sobre a premissa implícita de que as pessoas responderão a incentivos.
[...] As pessoas tomarão mais ou menos cuidado se forem ou não responsabilizadas pelos danos
que causarem a terceiros. Juízes serão mais ou menos cautelosos em seus julgamentos se tiverem
de motivar mais ou menos suas decisões. Agentes públicos trabalharão mais ou se corromperão
menos se seus atos forem públicos. [...]
Por outro lado, se as pessoas não respondessem a incentivos, o direito seria de pouca ou nenhu-
ma utilidade. Todos continuariam a se comportar da mesma forma e a criação de regras seria

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