No fim, tudo é uma questão de perspectiva...

AutorNatália Ribeiro Machado Vilar
Páginas75-133
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NO FIM, TUDO É UMA QUESTÃO
DE PERSPECTIVA...
“Acontece com nosso julgamento a mesma coisa que com nossos relógios:
nenhum é exatamente igual, mas cada um acredita no seu”.
Alexander Pope (1711)
Nos primeiros capítulos, foram apresentadas algumas características acerca do
comportamento humano, bem como foram feitas algumas ref‌lexões gerais sobre o
quadro litigioso no Brasil e suas possíveis inf‌luências. Buscou-se, dentro do possível,
ref‌letir a partir das contribuições da economia e da psicologia.
Compreende-se necessário, ainda, trazer uma perspectiva mais específ‌ica, rela-
cionada aos atores principais do processo: o autor, o réu e o juiz. Esses sujeitos serão
divididos em: particulares, Poder Público e juiz, tendo em vista as peculiaridades
do retrato litigioso do País, e os objetivos desta obra.
Diante disso, o presente capítulo, dividido em três seções, investigará a pers-
pectiva comportamental de cada um desses atores processuais, no cenário da liti-
giosidade brasileira.
3.1 PARTICULARES
Os textos sobre análise econômica do processo judicial são iniciados, em regra,
a partir da premissa de que os litigantes em potencial fazem uma avaliação sobre
os custos da demanda judicial. Trata-se de uma abordagem econômica padrão, que
considera as pessoas como agentes dotados de racionalidade limitada. Essa abor-
dagem identif‌ica que um litigante, em potencial, ajuizará uma demanda judicial
quando o custo esperado do processo for menor do que o benefício esperado pelo
processo (POSNER, 1986; ZAMIR; TEICHMAN, 2018; COOTER; ULEN, 2010;
SHAVELL, 2004).
Evidentemente, os custos e os fatos são analisados de acordo com cada con-
texto, levando-se em conta os fatos subjacentes ao caso, as normas aplicáveis (leis
e precedentes), bem como os valores alocados, como taxas judiciárias e honorários
advocatícios.
COMPORTAMENTO LITIGIOSO • NATÁLIA RIBEIRO MACHADO VILAR
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Como apresentado anteriormente, as possibilidades de litigar gratuitamente
no Brasil são diversas, e isso não inclui apenas as pessoas que não podem pagar os
custos do processo. Assim, diante da realidade nacional, é comum que esse cálculo
(custo x benefício) sequer precise ser realizado.
Portanto, inúmeras vezes, os custos e os riscos de perda f‌inanceira decorrentes
de uma demanda são desconsiderados, mitigando-se, assim, os efeitos da humana
aversão à perda. Por consequência, entende-se que, logo de início, há um encoraja-
mento ao litígio judicial no País.
No entanto, para os litigantes, os custos não se restringem às despesas monetá-
rias. Ainda que f‌inanceiramente não haja ônus, não se pode desconsiderar os custos
do esforço, do tempo, da inconveniência e dos desgastes de um confronto judicial,
além de possíveis custos de reputação para as partes (ZAMIR; TEICHMAN, 2018).
Essa conjuntura conduz a outras ref‌lexões. Por que encarar um processo judicial
se é possível buscar uma solução negociada? Por qual razão deposita-se o poder de
solução do próprio conf‌lito a um terceiro estranho (o juiz)? Af‌inal, é melhor realizar
um acordo ou ajuizar uma demanda judicial?
Não há evidências conclusivas que respondam todas essas perguntas, mas algu-
mas características do comportamento humano podem trazer possíveis explicações
para essas indagações.
3.1.1 Conciliar é legal?
Costuma-se apontar que, no Brasil, não existe uma tradição de negociação1.
Ademais, no geral, os acordos realizados ocorrem no âmbito do próprio Poder Judi-
ciário, depois de ajuizada a ação. E, mesmo diante de uma forte política adotada pelo
CNJ, desde 2006, “a litigiosidade no Brasil permanece alta e a cultura de conciliação
[...] ainda apresenta lenta evolução” (CNJ, 2020, p. 6).
Numerosos estudos experimentais e empíricos examinaram as preferências ex
ante e a satisfação ex post em relação a vários mecanismos não judiciais de resolução
de disputas. Tais estudos compararam, em especial, a arbitragem com a mediação, ou
as soluções alternativas de disputas vinculadas ao judiciário com os litígios judiciais
comuns. No entanto, não se conf‌irmaram evidências empíricas comprovando que
os mecanismos privados e voluntários de solução alternativas de disputas sejam
superiores ao litígio comum (ZAMIR; TEICHMAN, 2018).
Efetivamente, existem opções diferentes da solução judicial para resolução de
conf‌litos. É possível que as partes recorram ou não à ajuda de um terceiro neutro,
fora do âmbito do Judiciário, como na mediação e na arbitragem. Isso pode se dar
1. Não é raro ouvir, no meio jurídico brasileiro, que se a parte ré propõe um acordo é porque sabe que vai
perder a demanda judicial, fortalecendo a tomada de decisão do autor no sentido de propor ou seguir com
o processo.
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3 • NO FIM, TUDO É UMA QUESTÃO DE PERSPECTIVA...
a partir de uma opção voluntária ou como decorrência de uma cláusula contratual
ou de um dispositivo legal2.
No clássico artigo “Against Settlement” [“Contra Acordo”], Owen Fiss (1984)
aborda a questão. Para ele, os defensores incondicionais dos acordos passaram a
identif‌icar os julgamentos judiciais como uma institucionalização de um estranho
exercendo poder. No entanto, em muitos casos, ocorre uma ruptura na relação social
entre as partes, sendo impossível a realização de um acordo realizado em harmonia
entre as partes. Em outras situações, existirão partes vulneráveis, e os atos do juiz
poderão mitigar eventuais desequilíbrios.
Além do mais, o Judiciário não pode ser compreendido apenas como um órgão
que resolve conf‌litos entre as pessoas. A sociedade deve se interessar nas soluções
judiciais, na medida em que, ao aplicar a lei ao caso concreto, cumpre a função de
disseminar as escolhas políticas e sociais eleitas pelo Estado (FISS, 1984).
Outra preocupação apontada por Fiss (1984) é que o objetivo de “facilitação”
dos acordos pode, em vez de meramente encorajar as partes, pressioná-las a realizar
acordos. Para tanto, ele critica a redação de dispositivo legal norte-americano que
pode vir a compelir as partes a realizar tentativas de acordo, anteriormente ao jul-
gamento judicial. Trata-se de proposta legal de conteúdo semelhante ao que existe
no CPC/2015 (art. 319, VII; art. 334, § 4º, I, § 5º3).
Desse modo, Fiss (1984) considera que são questionáveis a premissas supos-
tamente positivas dos acordos. Dentre os prejuízos, aponta a existência de acordos
realizados sem verdadeiro consentimento das partes, ou mediados por quem não se
reveste de autoridade. Ademais, entende que a realização de acordos pode impos-
sibilitar a posterior apreciação do caso, pelo Judiciário, mesmo quando o resultado
do ajuste tenha sido “injusto”4. Para o referido autor: “o acordo é uma rendição às
condições da sociedade de massa e não deve ser encorajado nem elogiado” (p. 1075).
De fato, a prática da realização de acordos não pode ser institucionalizada de
forma indiscriminada, como se sempre fosse preferível ao julgamento judicial. De-
ve-se ponderar que há diferentes casos, cada um com particularidades apropriadas
a um tipo de solução e não outra (Cabral, 2016).
2. No Brasil, registre-se, há determinação legal expressa de exigência de audiência de conciliação ou mediação,
no início do curso do processo judicial. CPC/2015: “Art. 319. A petição inicial indicará: [...] VII – a opção
do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação”. A ausência desse ponto pode
acarretar no indeferimento da petição inicial (art. 321, CPC/2015). Registre-se, ainda, o seguinte: “Art. 334.
[...] o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias,
devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência. [...] § 4º A audiência não será
realizada: I – se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual;
[...] § 5º O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu deve
fazê-lo, por petição, apresentada com 10 (dez) dias de antecedência, contados da data da audiência”.
3. Dispositivos transcritos na nota de rodapé anterior.
4. Entre aspas porque anteriormente foi esclarecido que o signif‌icado de “justiça” é vago e subjetivo.

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