Atenção primária e a privatização dos serviços de saúde

AutorLenir Santos
CargoUniversidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. Departamento de Saúde Coletiva. Campinas/SP, Brasil.
Páginas1-18
1
R. Dir. sanit., São Paulo v.22n2, e0014, 2022
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2022.181323
Artigo Original
http://revistas.usp.br/rdisan
RESUMO
O presente artigo investigou a hipótese de
privatização dos serviços de atenção primária
da saúde, a partir da a nálise da natureza desses
serviços no Sis tema Único de Saúde e dos regim es
de privatização/terceirização dos serviços de
saúde, a exemplo, o da complementaridade e
o das parcerias. Buscou-se compreender se a
natureza pública é atr ibuto especial desse ser viço
ou se ele está compreendido no âmbito da
assistência à saúde, de prestação concorrencial
(pública e privada), destituído de qualquer
especificidade que interdite seu transpasse
ao setor privado. Analisaram-se conceitos
doutrinários e regr amentos da atenção primária,
o conceito de serv iço público e as diversas formas
de terceirização/privatização para examinar se
os serviços de atenção primária têm gênese
de serviço público e xclusivo (que não permite
terceirização lato sensu) ou se se trata de serviço
público obrigatório, mas sem exclusividade,
concorrendo, pois, com a iniciativa privada,
e ficando abert os à possibilidade de ser objeto de
complementaridade, parcerias e colaboração.
Palavra-Cha ve: Atenção Primária à Saúde;
Direito Sanitário; Privatização; Parcerias
Público-Privadas na Saúde.
ABSTRACT
This article discuss ed the hypothesis related to
privatization of primary health care services. The
discussion is made from the an alysis of their public
nature in the Brazilian N ational Public Health
System and from the pr ivatization/outsourcing
of health services, taking complementary and
partnerships as an example. The aim was to
understand whether the public nature is a special
attribute of this s ervice or whether it is a ser vice
included in the scope of health care, devoid
of any specificity th at prevents its transfer to
the private sector. The work analyzes doc trinal
concepts and rules of primary health care, the
various forms of outsourcing/privatization, and
the concept of public ser vice to unders tand
whether primar y health care has it s genesis in
an exclusively public ser vice (that does not allow
lato sensu outsourcing) or whether it should
be classified as a mandatory public ser vice,
but without exclusivit y, thus competing with
the private sector, which opens the possibility
of being the object of complementarit y,
partnerships, collaboration.
Keywords: Primary Health Care; Health
Law; Privatization; Public-private Partnerships
in Health.
Lenir Santos1
1Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. Departamento de Saúde Coletiva. Campinas/SP,
Brasil.
http://orcid.org/0000-0003-2911-1188
Correspondência:
Lenir Santos
santoslenir@terra.com.br
Recebido: 14/12/2020
Revisado: 03/ 01/202 2
Aprovado: 09/02/2022
Conito de interesses:
A autora declara não haver
conflito de interesses.
Contribuição dos autores:
Todos autores contribuíram
igualmente para o
desenvolvimento do artigo.
Copyright: Esta licença permite
que outros remixem, adaptem
e criem a partir do seu trabalho
para fins não comerciais, desde
que atribuam a você o devido
crédito e que licenciem as novas
criações sob termos idênticos.
Atenção primária e a privatização dos
serviços de saúde
Primary health care and privatization of health services
2
Atenção primária e a privatização dos serviços de saúde Santos L.
R. Dir. sanit., São Paulo v.22n2, e0014, 2022
Introdução
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) (BRASIL, 1988) mudou a face do Estado
brasileiro e reconheceu direitos individuais e sociais até então distantes da população,
que se via afastada da proteção estatal em diversos campos e necessidades, inclusive
em saúde pública. Reconhecer a saúde como direito de todos e dever do Estado impôs
ao Estado a construção de um sistema público de saúde de competência comum de
todos os entes federativos, os quais devem integrar em um único sistema público,
o Sistema Único de Saúde (SUS), suas ações e seus serviços de saúde. Trata-se de
um modelo administrativo-sanitário ousado para um país federativo pelo fato de tal
integração (SANTOS, 2013) de serviços não ser sugestiva, mas sim obrigatória, o
que exigiria, de plano, uma reforma abrangente na administração pública.
Reformas administrativas ocorreram nos governos pós-CF/88, mas nem sempre foram
integradas e capazes de garantir à população seus direitos sociais de modo qualitativo e
eficaz. Essas reformas, que, na concepção de Abrucio (2007, p. 68), tiveram resultados
“desiguais e fragmentados para o conjunto do Estado, afora alguns problemas não
terem sido devidamente atacados”, de todo modo melhoraram a administração pública,
mas não conseguiram qualificar a gestão dos serviços de saúde, que ainda hoje se
veem fragmentados (sem integração) em importantes aspectos, como a formação de
profissionais de saúde, o desenvolvimento de ciência e tecnologia, a proteção ao meio
ambiente e atividades relevantes para a saúde – isso sem falar da captura política,
que ainda persiste no serviço público, de cargos e verbas aplicadas ao arrepio do
planejamento sanitário.
Importante fixar que a terceirização dos serviços públicos de saúde, um dos objetos
deste estudo, sob o regime da complementaridade previsto na CF/88 (BRASIL, 1988)
e na Lei n. 8.080/1990 (BRASIL, 1990), antecede a criação do SUS. Tanto que, durante
a Assembleia Nacional Constituinte, a complementaridade na saúde pública, no âmbito
da previdência social, foi objeto de longos debates, dando origem ao disposto no
parágrafo 1º do artigo 199 da CF/88, que prevê que:
A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º. As instituições
privadas poderão par ticipar de forma complementar do sistema único
de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito
público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas
e as sem fins lucrativos (BRASIL, 1988)
Tal previsão foi necessária para contemplar os ajustes existentes à época entre o Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) – autarquia integrante
do Ministério da Previdência e Assistência Social extinta em 1993, que contratava 70%
de seus serviços médico-hospitalares – e o setor privado da saúde que se restringiam à
compra de serviços privados de saúde para atendimento público. No caso do Inamps,
os contratos firmados entre o instituto e as entidades privadas com e sem fins lucrativos
foram objeto de discussão por longo tempo, inclusive de modo crítico quanto ao modelo
de contrato e à forma de controle e de pagamento pelos constantes escândalos de
corrupção em sua execução.
Neste trabalho, em alguns momentos a expressão “terceirização” foi usada de modo
abrangente, compreendendo, além da terceirização no senso estrito e prevista no
Decreto Federal n. 9.507/2018 (BRASIL, 2018): as parcerias público-privadas regidas
pela Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004) (concessão administrativa e patrocinada); as
concessões comuns da Lei n. 8.987/1995 (BRASIL, 1995); a participação complementar
do setor privado no SUS; e o fomento público. Quando foi necessário especificar,
usou-se a nomenclatura própria. Lembre-se, ainda, que organização social, de acordo
com a Lei n. 9.637/1998 (BRASIL, Lei n. 9.637/1988), tem sido a máxima expressão
do programa federal de publicização dos serviços públicos.

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