Atuação das centrais sindicais no contexto da covid-19: aproximações e distanciamentos/Role of the union centrals in the context of covid-19: approximations and distances.

Autorde Souza Camargo, Amanda

Introdução

A pandemia do novo coronavÃÂrus representa uma das mais profundas crises humanitárias já vivenciadas em escala global. Diante de sua rápida disseminação e dos altos nÃÂveis de contágio do novo vÃÂrus, as principais medidas necessárias para a contenção da doença--isolamento social para evitar contaminação, quarentena de pessoas infectadas, restrição da mobilidade de pessoas e bens, dentre outras--afetaram o núcleo duro do sistema capitalista: a produção e o consumo, engendrando um processo de recessão econômica profunda que rapidamente atravessou as fronteiras e hoje representa um desafio para boa parte dos paÃÂses.

A personificação deste núcleo duro afetado pela crise sanitária e econômica, aqueles que produzem, consomem e vivem de seu próprio trabalho, foram, portanto, protagonistas deste complexo cenário em que a disseminação do vÃÂrus precisava ser contida prioritariamente a partir da restrição da circulação humana, trazendo àtona "velhas" e persistentes questões, como a centralidade do trabalho para a reprodução do capital e a importância da organização da classe que trabalha para conter o seu avanço destrutivo ou, como lucidamente nomeou Ricardo Antunes, para barrar o "metabolismo antissocial do capital cuja normalidade é a destrutividade" (ANTUNES, 2020, p. 12).

Com nÃÂveis de desemprego, precarização e informalidade já extremamente altos antes do surgimento do novo coronavÃÂrus, a crise sanitária representou para o Brasil um momento em que a questão do trabalho e da organização dos e das trabalhadoras - para reivindicação de pautas como o atendimento de saúde público e de qualidade, o acesso àrenda emergencial e a proteção do trabalho face às "novas" (1) investidas de fragilização de normas protetivas - se tornaram peças chaves para o enfrentamento da crise.

Nesse contexto, as centrais sindicais do paÃÂs, na qualidade de polos de aglutinação e de direção polÃÂtica de diversas categorias de trabalhadores(as), perfizeram trajetórias que por vezes se tangenciaram no que diz respeito às principais reivindicações de suas bases, mas que em determinados pontos se distanciaram, como no caso de pautas polÃÂticas articuladas com a finalidade de deposição do Presidente da República no perÃÂodo pandêmico, Jair Messias Bolsonaro.

Esse movimento de aproximação e distanciamento corresponde, em boa medida, aos perfis das centrais sindicais e dos setores que representam, às suas localizações históricas quanto às questões referentes ao mundo do trabalho, bem como a aspectos estruturais da vida polÃÂtica do paÃÂs. Aqui, a bricolagem de diversas e numerosas entidades retrata o cenário mais amplo da fragmentação não só das organizações sindicais, mas da própria classe-que-vive-do-trabalho (2) no Brasil.

No presente artigo, serão analisadas as principais bandeiras e reivindicações levantadas durante a pandemia do novo coronavÃÂrus por três centrais sindicais: a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-Conlutas) e a Força Sindical. Trata-se de centrais que dialogam com distintas bases sociais e categorias profissionais e que, no perÃÂodo histórico recente, se posicionaram de formas diferentes a respeito de temas relevantes para a polÃÂtica brasileira, tais como o "impeachment" da presidenta Dilma Rousseff em 2014, a Reforma Trabalhista de 2017, a Reforma da Previdência e, já no contexto da pandemia, sobre as medidas propostas em diferentes nÃÂveis de governo para mitigar os impactos da covid-19 sobre as condições de trabalho e renda dos(as) trabalhadores(as).

Assim, partindo de uma revisão bibliográfica sobre o sindicalismo contemporâneo no Brasil e o surgimento/atuação das centrais sindicais abordadas na investigação, será realizada uma análise detida dos documentos institucionais por elas publicados, tais como notas públicas, teses congressuais, resoluções e artigos editoriais a respeito do posicionamento e das pautas de atuação das centrais no perÃÂodo compreendido entre fevereiro e agosto de 2020. O estudo conta, ainda, com o apontamento de dados da economia brasileira no perÃÂodo abordado, disponibilizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), articulados com notÃÂcias de grande circulação a respeito das medidas adotadas por diversos nÃÂveis de governo, sobretudo o federal, para lidar com a pandemia de covid-19 e seus efeitos socioeconômicos.

Objetiva-se, pois, a construção de um diagnóstico concernente a um momento histórico atÃÂpico, revelando-se como as centrais sindicais estudadas atuaram diante do contexto que se impôs e compreendendo se e de que maneira as pautas privilegiadas por essas organizações se aproximaram ou se tensionaram, tendo em vista as caracterÃÂsticas e perfis dessas entidades, no cenário atual da organização sindical dos e das trabalhadoras no paÃÂs.

Crise sanitária e o mundo do trabalho

No inÃÂcio de 2020, a expansão do novo coronavÃÂrus se agravou vertiginosamente e, em 11 de março, a OMS declarou o "status" pandêmico da doença (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020), dado o rápido avanço geográfico doença, os nÃÂveis alarmantes de contaminação e, ainda, a falta de ação dos governos de diversos paÃÂses afetados.

O Brasil, intensamente afetado ao longo do processo de disseminação da doença, foi palco de ações por vezes contraditórias e em geral ineficientes para o combate do novo coronavÃÂrus. Aqui se destaca a negligência do Poder Executivo federal, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, que apesar da declaração inicial da emergência nacional de saúde e da publicação da assim chamada Lei da Quarentena (Lei no. 13.979 de 6 de fevereiro de 2020), dispondo a respeito de medidas para enfrentamento da covid-19 (3), desde o inÃÂcio da pandemia adotou a postura de negar a periculosidade do vÃÂrus, chamando a doença de mera "gripezinha" (BETIM, 2020), bem como estimulando a adoção de tratamentos não validados pelas organizações internacionais e nacionais de saúde, como o uso da hidroxicloroquina.

O presidente também antagonizou diretamente as medidas de isolamento social e quarentena promovidas nas esferas estaduais (OLIVEIRA; ROSSI, 2020), mediante constantes tensionamentos relacionados às estratégias adotadas pelo governo federal para a contenção da pandemia no paÃÂs e trocas seguidas de Ministros da Saúde. O aprofundamento da crise se potencializou com o advento das vacinas para o coronavÃÂrus, trazendo conflitos diplomáticos e com a comunidade cientÃÂfica em virtude da postura negacionista do chefe do Poder Executivo Federal.

Os duros efeitos da pandemia sobre a população brasileira foram, assim, complexificados pela crise polÃÂtica latente do governo Bolsonaro, eleito em 2018 em um contexto de grande polarização polÃÂtica, beneficiado pelo avanço do antipetismo e de movimentos de extrema direita no paÃÂs e que, uma vez empossado, adotou uma série de medidas que aprofundaram a "ofensiva neoliberal restauradora" por meio da retirada sistemática de direitos sociais, sobretudo os direitos trabalhistas (MARCELINO; GALVÃO, 2020).

O assim chamado "mundo do trabalho" foi diretamente afetado pelas consequências socioeconômicas da covid-19 em todo o mundo (ANTUNES, 2020). Os altos ÃÂndices de mortalidade, o aumento exponencial da pobreza e do desemprego afetaram diretamente a "totalidade da classe trabalhadora" (ANTUNES, 2020, p. 7-8).

No Brasil, lugar em que a classe-que-vive-do-trabalho sempre enfrentou condições intensas de exploração e que mesmo antes da pandemia encontrava-se imersa no mercado informal de trabalho (ANTUNES, 2020)--o cenário não poderia ser diferente. Foram 7,8 milhões de postos de trabalho perdidos em apenas três meses, dos quais 5,8 eram trabalhadores(as) informais (ALVARENGA; SILVEIRA, 2020). Pela primeira vez, menos da metade da população em idade de trabalhar esteve ocupada e o desemprego acumulado atingiu o percentual de aproximadamente 13% da população economicamente ativa (4).

A renda média efetivamente recebida pelos(as) trabalhadores(as) também revelou profunda queda. No caso dos trabalhadores e trabalhadoras informais (aproximadamente 40% da força de trabalho), a redução foi a mais severa: receberam apenas 60% do que habitualmente recebiam. Majoritariamente concentrados(as) nos setores de serviços, portanto, os(as) trabalhadores(as) mais atingidos(as) pela pandemia foram justamente aqueles(as) que gozam de menor proteção legislativa e que, ainda, apenas raramente se organizam em formatos tradicionais como os sindicatos (CARDOSO, 2015).

Outro aspecto que deve ser mencionado diz respeito ao perfil desse grande contingente de trabalhadores e trabalhadoras. Contrariando o mito de que doenças são fenômenos "democráticos", a disseminação do novo coronavÃÂrus é, como elucida Harvey (2020, p. 6), "altamente seccionada por gênero, raça e etnia na maior parte do mundo", o que se vislumbra no Brasil pelos altos números de contaminação em zonas urbanas periféricas (ROSSI, 2020), em setores econômicos especÃÂficos - como a cadeia produtiva dos frigorÃÂficos (MOTA, 2020), e pode ainda ser observado nos percentuais de desocupação elevados desde o inÃÂcio da pandemia (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020), principalmente para as mulheres (5).

Considerando esse quadro alarmante, destaca-se a importância da atuação sindical...

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