A austeridade da emenda constitucional no. 95/2016 e o avanço do Estado Pós-Democrático/The austerity of constitutional amendment no. 95/2016 and the advancement of the post-democratic state.

AutorBitencourt, Laura Vaz

Introdução

Os desafios para a manutenção de um Estado Democrático de Direito são tão significativos que talvez superem as próprias dificuldades encontradas quando da sua criação/implementação. Os caminhos percorridos, os paradigmas rompidos e os avanços alcançados precisam constantemente de reforço, cuidado, incentivo e renovação. Eis que a constância em que se vinha consolidando a democracia no Brasil parece ter se desviado do percurso programado e assumido caracterÃÂsticas que acabam colocando em xeque a sua própria existência.

Neste ÃÂnterim, quanto ao problema de pesquisa que permeia o presente estudo, cumpre ressaltar que a Emenda Constitucional no. 95/2016, conhecida como "teto dos gastos públicos", trouxe novos paradigmas àgestão orçamentária e àpolÃÂtica fiscal, com reflexos em especial no campo dos direitos sociais e das polÃÂticas públicas, notadamente em seu núcleo essencial, que são os direitos a educação e saúde. A partir dessa afirmação, indaga-se quais as principais caracterÃÂsticas que permitem afirmar que a Emenda Constitucional no. 95/2016 constituiu uma espécie de "legitimação jurÃÂdica" ao avanço do Estado Pós-Democrático no Brasil?

No âmbito atinente ao esvaziamento da democracia na contemporaneidade, nasce a proposta do presente trabalho, que, utilizando como teoria base o autor Rubens Casara e o conceito de Estado Pós-Democrático desenvolvido pelo autor no Brasil, busca realizar a análise da Emenda Constitucional (EC) no. 95/2016 como forma de legitimação jurÃÂdica para a instauração da Pós-Democracia no paÃÂs.

No primeiro momento, com o intuito de definir e evidenciar o possÃÂvel avanço do Estado Pós-Democrático, com recorte especÃÂfico no tocante aos retrocessos sociais evidenciados no âmbito dos direitos fundamentais sociais, se desenvolverá, além da definição do conceito de Estado Pós-Democrático, a sua relação com o Estado de Exceção. A partir de então, trabalhar-se-á com este Estado de Exceção e a cláusula de necessidade na tentativa de justificação da instauração do Estado Pós-Democrático para, em um segundo momento, tecer considerações acerca de como os conceitos de Pós-Democracia e neoliberalismo estão relacionados com o Estado Pós-Democrático e, finalmente, evidenciar o avanço do neoliberalismo e os retrocessos sociais no âmbito do Estado Pós-democrático.

Na sequência, o objetivo especÃÂfico é estudar o cenário de aprovação da Emenda Constitucional no. 95/2016 e trazer não só a perspectiva fiscal, como o próprio contexto polÃÂtico em que foi aprovada, evidenciando o mito envolto àsua publicação, qual seja, avanço econômico às custas dos direitos sociais. Por fim, preocupar-se-á em apontar as caracterÃÂsticas da Emenda Constitucional no. 95/2016 em relação ao "desbloqueio" do Estado Pós-Democrático, demonstrando, ainda, os reflexos da emenda no âmbito das polÃÂticas públicas e aqui, especificadamente, nas áreas da saúde e da educação.

Para a realização da presente pesquisa, utilizar-se-á o método de abordagem hipotético-dedutivo, tendo em vista que a pesquisa se inicia com "um problema ou uma lacuna no conhecimento cientÃÂfico, passando pela formulação de hipóteses e por um processo de inferência dedutiva" (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 32). A formulação do problema de pesquisa deu-se a partir de uma realidade aferÃÂvel e constatável, descrita de forma clara e objetiva que, após confrontação com a pesquisa teórica, permitiu testar a hipótese ou refutá-la a fim de chegar àresposta do problema proposto. No tocante àtécnica de pesquisa, será adotada a pesquisa bibliográfica, especialmente livros, dissertações, teses e artigos cientÃÂficos, bem como a análise de notÃÂcias e decisões judiciais, todas publicadas através dos meios de comunicação existentes, especialmente, sites oficiais.

  1. Definindo o Estado Pós-Democrático e a sua relação com o Estado de Exceção

    O esvaziamento da democracia contemporânea permeia e integra uma grande gama de debates da atualidade. Autores e cientistas sociais buscam, de forma incessante, encontrar respostas e explicações para compreender esta nova razão de mundo instaurada no século XXI. Dentre tantos autores, esta pesquisa utiliza Rubens Casara como autor base para o desenvolvimento do conceito de Estado Pós-Democrático, além de Giorgio Agamben e Manuel Castells, buscando trazer elementos que sirvam para demonstrar a efetiva desconfiguração da democracia no Brasil, reforçando a tese de Casara no tocante ao abandono do Estado Democrático de Direito e avanço àsolidificação do Estado Pós-Democrático.

    A análise do conceito de Estado Pós-Democrático e sua aparente concretização será abordada utilizando-se do Estado de Exceção e da cláusula de necessidade como tentativas de justificar a instauração da Pós-Democracia no Brasil. De acordo com Carl Schmitt (2005, p. 35), "entre todos los conceptos jurÃÂdicos es el de la soberanÃÂa el que más está al interés de la actualidad" (1). Poder, soberania, legalidade. Todos estes conceitos perfazem e se inter-relacionam na conceituação do Estado Pós-Democrático. Ambos os conceitos, porém, também são essenciais para a compreensão de uma das caracterizações do Estado de Exceção, eis que, segundo Ana S. T. Gomes e Andityas S. de Moura C. Matos (2016, p. 1762), o Estado de Exceção é justamente conceituado como uma medida excepcional àlegalidade, "sendo autorizado pelo ordenamento diante de situações emergenciais".

    Neste sentido, o debate em voga é exatamente aquele relacionado àlegalidade. Este é o viés aqui discutido, tendo em vista que, no atual contexto, a utilização do Estado de Exceção pelo poder instituÃÂdo tem se demonstrado muito mais como regra do que como exceção e é nesta "regularidade" da exceção que se identifica uma das caracterÃÂsticas que compõe o Estado Pós-Democrático. Conforme Caroline Muller Bitencourt (2019), "o Estado Pós-Democrático ou é ou mantém um 'flerte' com o Estado de Exceção".

    Dentre as teorias de regulação da excepcionalidade, segundo Giorgio Agamben (2017), a tentativa mais rigorosa de se construir uma teoria do estado de exceção é a obra de Carl Schmitt, esclarecendo-se que a obra de Agamben é uma análise daquilo que Carl Schmitt lecionou já nos anos de 1920 e 1921 nas duas obras principais que tratam da matéria em questão, quais sejam, "Die diktatur" e "Politische Theologie".

    É na obra "Politische Theologie" que Carl Schmitt trabalha com a teoria do estado de exceção apresentada como uma doutrina da soberania, ou seja, o autor trabalha com "a tentativa de ancorar sem restrições o Estado de Exceção na ordem jurÃÂdica" (AGAMBEN, 2017, p. 57), uma vez que traz a figura do soberano ao trabalhar com a ideia de este "estar fora e, ao mesmo tempo, pertencer" ao sistema como sendo a estrutura tipológica do Estado de Exceção. Isso porque "o soberano está fora da ordem jurÃÂdica normalmente válida e, entretanto, pertence a ela, porque é responsável pela decisão quanto àpossibilidade da suspensão in totto da constituição" (AGAMBEN, 2017, p. 57).

    A trivialização deste Estado de Exceção é o que consubstancia o grande problema, culminando em um possÃÂvel conceito de Pós-democracia. A normalização do Estado de exceção, segundo Günter Frankenberg (2018, p. 40), significa que "os instrumentos do direito de exceção são envolvidos no manto da normalidade normativa, tornados permanentes e cotidianos, por meio de sua juridificação, de suas figuras extrajurÃÂdicas de argumentação, bem como de sua recepção na dogmática do direito normal". Exatamente neste contexto, Leal (2019, p. 6) vai além, refletindo que o grande problema

    (...) é que tem se fragilizado os argumentos de justificação e fundamentação das condições e possibilidades do Estado de Exceção, na medida em que se reconhece instancias soberanas excepcionais sem a devida legitimidade democrática substancial e procedimental adequadas para tanto, trivializando-se a violência extraordinária do decisionismo despótico sob a assertiva da necessidade e urgência de medidas de emergência (LEAL, 2018, p. 6). A trivialização da excepcionalidade em que se usa a necessidade para justificar as ações e as medidas de urgência é que permeia e consubstancia a solidificação do Estado Pós-Democrático e, exatamente por isto, a compreensão do Estado de Exceção em sua forma de apresentação permanente é necessária para a garantia de exatidão conceitual do Estado Pós-Democrático. Nesse sentido, Valim (2017, p. 21) postula que, na teoria polÃÂtica, a exceção é o paradigma de governo da contemporaneidade, em que se verifica o uso reiterado da expressão "estado de exceção permanente", "de modo a caracterizar a progressiva substituição da polÃÂtica por formas de controle social--violence douce ou violência fÃÂsica aberta".

    O Estado de Exceção clássico seria aquele estado onde há a suspensão de toda a ordem jurÃÂdica e concentração dos poderes, normalmente junto ao Executivo, até a normalização das circunstâncias anormais, graves e imprevisÃÂveis que ameaçam a estrutura do próprio Estado de...

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