Autodeterminação dos povos para quem, cara pálida? Críticas decoloniais desde as realidades leste-timorense e Saarauí

AutorJackeline Caixeta Santana, Rosa Maria Zaia Borges
CargoMestra (2023) e graduada (2019) em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Pós-Graduanda em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). / Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (2009). Mestre em direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2001).
Páginas273-309
Rev. direitos fundam. democ., v. 28, n. 2, p. 273-309, mai./ago. 2023.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd v28i22459
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS PARA QUEM, CARA PÁLIDA? CRÍTICAS
DECOLONIAIS DESDE AS REALIDADES LESTE-TIMORENSE E SAARAUÍ
SELF-DETERMINATION OF PEOPLES FOR WHOM, PALE FACE? DECOLONIAL
CRITICS FROM REALITIES OF EAST TIMOR AND WESTERN SAHARA
Jackeline Caixeta Santana
Mestra (2023) e graduada (2019) em Direito pela Universidade Federal de
Uberlândia. Pós-Graduanda em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pela
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO). Assistente
Editorial da Revista de Estudos Empíricos em Direito - REED (ISSN: 2319-
0817). Pesquisadora no Cravinas - Clínica de Direitos Humanos e Direitos
Sexuais e Reprodutivos (FD/UnB). Rosa Maria Zaia Borges
Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (2009). Mestre em
direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2001). Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (1997). Professora adjunta
e coordenadora do Programa de Pós-graduação stricto sensu na Faculdade
de Direito "Jacy de Assis" da Universidade Federal de Uberlândia.
RESUMO
À vista do grande valor atribuído ao princípio da autodeterminação pela
sociedade internacional, o que irradia nas agendas político-jurídicas internas
dos mais variados Estados do globo, a presente pesquisa tem por objetivo
questionar o seu entendimento enquanto um construto consensualmente
pactuado, universalmente aplicado, inegavelmente emancipatório e
deliberadamente concedido pelos Estados considerados capazes de se
autogovernar como um atributo de igualdade. Sob o aspecto metodológico,
consiste em um estudo qualitativo, amparado na discussão das realidades
enfrentadas pelo Timor-Leste e pelo Saara Ocidental e realizado através de
revisão bibliográfica e documental orientada pelo referencial epistemológico
decolonial. Ao final, restou evidente que a elaboração e a instrumentalização
do princípio ocorre no marco dos preceitos moderno-coloniais e, uma vez
forjado por Estados hegemônicos, é manipulado conforme os interesses
internacionais que melhor lhes assistem. Ainda, trata-se de um princípio que
enuncia a possibilidade e o direito de habitar corpos e espaços dissidentes
na aldeia global – o que, ao menos do ponto de vista simbólico alude a um
processo de reconhecimento de igualdade que, por sua vez, está intrincado
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JACKELINE CAIXETA SANTANA / ROSA MARIA ZAIA BORGES
à aquisição de liberdade – mas não se ocupa de enxergar e mitigar os riscos
do ato político-jurídico de autodeterminar-se. As realidades enfrentadas pelo
Timor-Leste e pelo Saara Ocidental demonstraram, portanto, que nos
espaços onde a arena internacional cede à sua estruturação ainda moderno-
colonial, a colonialidade e a imperialidade se proliferam e se perpetuam,
esvaziando o conteúdo normativo supostamente emancipatório da
autodeterminação.
Palavras-chave: Colonialidade jurídica. Direito Internacional.
Reconhecimento de Estado. Saara Ocidental. Timor-Leste.
ABSTRACT
In view of the substantial value attributed to the principle of self-determination
by international society, which radiates in the internal political-juridical
agendas of the most varied States of the world, the present research aims to
question the understanding of the mentioned principle as a consensually
agreed construct, universally applied right, undeniably emancipatory
principle and deliberately granted by States considered capable of self-
government as an attribute of equality – “I recognize you as a State because
you own the same characteristics that I have”. From the methodological point
of view, this research consists of a qualitative study, supported by the
discussion of the realities faced by East Timor and Western Sahara and
carried out through a bibliographic and document review guided by the
decolonial epistemological framework. In the end, it was evident that the
elaboration and instrumentalization of self-determination occurs within the
framework of modern-colonial precepts and, once forged by hegemonic
States, it is manipulated according to the international interests that best
assist them. Still, it is a principle that enunciates the possibility and the right
to inhabit dissident bodies and spaces in the global village – which, at least
from a symbolic point of view, alludes to a process of recognition of equality
that, in turn, is intricate to the acquisition of freedom –, but it is not concerned
with perceiving and mitigating the risks of the political-legal act of self-
determination. The realities faced by East Timor and Western Sahara have,
therefore, demonstrated that in spaces where the international arena gives
way to its still modern-colonial structuring, coloniality and imperiality
proliferate and perpetuate themselves, emptying the supposedly
emancipatory normative content of self-determination.
Keywords: Coloniality of law. International Law. Recognition of State.
Western Sahara. East Timor.
[...] Y nada, nada de nada, se habla del Muro de Marruecos,
que desde hace 20 años perpetúa la ocupación marroquí del Sáhara occidental.
Este muro, minado de punta a punta y de punta a punta vigilado por miles de soldados, mide
60 veces más que el Muro de Berlín.
¿Por qué será que hay muros tan altisonantes y muros tan mudos?
(GALEANO, 2008, p. 306, grifo nosso)
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A íntima relação entre Direito Internacional moderno e sociedade interestatal é uma
realidade sentida desde a Paz de Westfália (1648) e que persiste como elemento
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AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS PARA QUEM, CARA PÁLIDA?...
informador da arena político-jurídica internacional até a atualidade, dado que,
inegavelmente, o moderno sistema de Estados baseia-se na premissa de existência de um
poder supremo dentro de fronteiras estabelecidas (HERZ, 1997). Assim, ao partir do
pressuposto de que as relações vistas como mais relevantes à nível global ocorrem entre
entidades soberanas, independentes e – ao menos do ponto de vista formal – iguais, este
discurso oculta que, até meados do século XX, o Direito Internacional era narrado como
uma criação e uma prerrogativa exclusiva das nações ocidentais – notadamente cristãs,
europeias e consideradas um parâmetro civilizacional a ser alcançado por todo o globo
(DAL RI JÚNIOR; BIAZI; ZIMMERMANN, 2017; WAISBERG, 2011).
Para além da origem atravessada por binarismos deste campo do Direito,
responsáveis por reduzir histórias, culturas e relações ao binômio “arcaicas vs. evoluídas”,
observa-se que esta configuração acompanhou as dinâmicas internacionais de modo a
ultrapassar o colonialismo como categoria político-jurídica legitimada, firmando-se, pois,
como uma consequência da colonialidade1. É neste ponto que as lutas por descolonização,
nas décadas de 1950 a 1970, irromperam desestabilizando as premissas coloniais na arena
internacional e reivindicando a emancipação deste sistema de dominação e exploração, o
que se dá, sobretudo, sob a égide do tão valorado princípio da autodeterminação dos povos
(OJUKWU; OKOLI, 2021, p. 127; GALINDO, 2015).
A partir disso, este princípio levanta a expectativa de que, finalmente, o Direito
Internacional estaria maduro o suficiente para superar a “linha de inclusão-exclusão da
civilização” (DAL RI JÚNIOR; BIAZI; ZIMMERMANN, 2017, p. 66, grifo dos autores).
Entretanto, percebe-se que sua articulação está muito comumente vinculada ao
questionamento da viabilidade do Estado “oriundo”2 do exercício deste direito o que
implica interrogar quanto à sua capacidade de autogoverno –, bem como é balizada pelo
enaltecimento da estabilidade política, da soberania estatal e da integridade territorial nas
relações jurídico-políticas internacionais (OJUKWU; OKOLI, 2021, p. 128).
Por esta razão, enunciou-se a necessidade de encampar um processo de ruptura
1 Cf. Quijano, 2000.
2 Opta-se pela utilização das aspas neste termo porque neste questionamento, em geral, está implícita a
adoção da teoria constitutiva em matéria de Reconhecimento de Estado, a qual preconiza que a personalidade
jurídica internacional do Estado lhe é atribuída pelo ato político do reconhecimento, de modo a constituí-lo.
Contudo, o posicionamento adotado afasta-se desta corrente doutrinária, vez que compreende o ato do
reconhecimento como um comportamento meramente declaratório, isto é, aquiesce a concepção de que, ao
reunir os requisitos internacionalmente preceituados para a sua existência, cabe à sociedade internacional
apenas declarar que aquele Estado, já dotado de personalidade jurídica, faz jus a esta qualificação. Cf.
Mazzuoli, 2021; Accioly, Silva e Casella, 2012.

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