Autoritarismo e Racismo: Oliveira Vianna, Constituição e Democracia sob os Trópicos

AutorEvandro Piza Duarte
CargoDoutorado em Direito pela Universidade Nacional de Brasília (UnB), Mestrado em Direito pela UFSC (1998) e Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993)
Páginas79-98
Direito, Estado e Sociedade n. 61 jul/dez 2022
Autoritarismo e Racismo: Oliveira Vianna,
Constituição e Democracia sob os Trópicos
Authoritarianism and Racism: Oliveira Vianna, Constitution
and Democracy in the
Tropics
Evandro Piza Duarte*
Universidade de Brasília, Brasília DF, Brasil
1. Introdução
1
Francisco José Oliveira Vianna
2
(1883-1951) foi, no dizer de Antônio Paim, o representante
do elemento mais característico do ideário da República, a “ascensão do autoritarismo
político” que ora se manifestou como discurso ora apenas como “prática autoritária”
3
.
Segundo Clóvis Moura, ele foi o principal estudioso entre aqueles “que fizeram da história
social do Brasil um prolongamento do processo de interação racial nos seus diversos
aspectos”, defensor da “necessidade de se estimular um processo arianizante para que as
nossas possibilidades de evolução no processo civilizatório fossem favoráveis”
4
.
A propósito, Ricardo Silva, ao analisar as Instituições Políticas Brasileiras (IPB) (1949),
afirma que seu ponto de partida estaria na percepção da disjunção entre o “país real” e o
“país ideal”, ou seja, entre as instituições de direito público criadas pelas elites e o seu
confronto com as instituições que prevaleceriam na prática (o “direito do povo-massa”). Por
sua vez, a “dramaticidade” da “história política” estaria no “esforço improfícuo das elites
para obrigar o povo-massa a praticar este direito por elas elaborado, mas que o povo-massa
desconhece e a que se recusa a obedecer”. Portanto, “[...] nosso mais grave problema
residiria na estrutura do povo- massa e nos complexos culturais que o dominam, fonte de
nosso direito costumeiro, contra a qual se estilhaçariam as frágeis Constituições liberais”
5
.
* Doutorado em Direito pela Universidade Nacional de Brasília (UnB), Mestrado em Direito pela UFSC (1998) e
Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993). E-mail: evandropiza@gmail.com.
1
Agradeço ao Professor Menelick de Carvalho Netto pelo diálogo durante a elaboração desse texto. O presente texto
foi possível graças à bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq.
Ademais, a publicação integra o projeto "Justiça, racismo e sexismo: dimensões da desigualdade nos sistemas de justiça
do Brasil, dos EUA e da Colômbia, as estratégias de análise e controle judicial”, Capes/Print.
2
“Seu primeiro livro – Populações Meridionais do Brasil aparece em 1920, quando completa 37 anos. Nesse mesmo
ano publica O idealismo da Constituição”. Finalmente, em 1949, seu texto mais conhecido, Instituições Políticas
Brasileiras. PAIM, 2005, p. 21.
3
PAIM, 1999, pp. 11-12.
4
1990, p. 197.
5
SILVA, 2008, p. 247.
Evandro Piza Duarte
Direito, Estado e Sociedade n. 61 jul/dez 2022
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O presente artigo parte do papel de Oliveira Vianna na construção do autoritarismo
instrumental e da afirmação de Clóvis Moura sobre a importância do racismo
6
em sua obra
para formular as seguintes perguntas iniciais: O pensamento jurídico-político de Oliveira
Vianna, especialmente sua crítica ao idealismo da Constituição, pode ser descontextualizada
da sua defesa das teses do racismo científico? De que modo as concepções sobre raça e
branquidade se articulam na ideia de um Estado tecnocrático que oculta as suas estratégias
de (re)produção de hierarquias raciais no plano do direito
7
?
O tema da “disjunção” é considerado aqui, porém, des de o “Idealismo da
Constituição”
8
, sua obra anterior à Instituições Políticas Brasileiras e, por assim dizer, mais
propriamente “jurídica”. Numa visão geral, a proposta de Oliveira Vianna em muito se
assemelha a de Carl Schmitt na crítica do liberalismo ( pluralidade de opiniões conflitantes e
não reduzíveis a uma vontade) em nome da democracia (formação de uma vontade
identificada com o povo), assim como da de Ferdinand Lass ale
9
na distinção entre
constituição escrita (“folha de papel”) e constituição real (“fatores reais de poder”) e da de
Sieyés
10
na reivindicação da nação, definida como uma classe que “representasse” as forças
vivas da sociedade.
Todavia, a pergunta central aqui proposta é: Qual a relação entre essa noção de
“disjunção” e a assunção de uma perspectiva racializada da história para a opção entre a
alternativa procedimentalista, que crê na possibilidade de coesão social por meio dos
procedimentos democráticos, e a alternativa substancialista, que busca a coesão social
desde a esfera da cultura
11
?
A disjunção entre “país ideal” e “país real” traz como pano de fundo, e como solução,
a distinção entre povo (elites de poder qualificadas) e plebe (massa amorfa), perpassada e
fundamentada na compreensão racializada e racista da história e da sociedade brasileiras,
convergindo para a defesa do Estado como agente de construção da nacionalidade (e da
hegemonia branca na colônia) e na representação do papel perigoso da ideia democrática
de participação popular.
A especificidade da opção de Oliveira Viana tem raízes na colonialidade do saber e do
poder, pois é desde a experiência de mundialização do capitalismo que são "naturalizadas
as experiências, identidades e relações históricas da colonialidade e da distribuição
geocultural do poder capitalista mundial”, e, s obretudo, as classificações sociais
racializadas
12
. As relações entre dentro e fora dessa disjunção, com o conflito de tradições
culturais “universais" e "realidades locais", pressupõe a perspectiva de que a Europa e seus
6
Além da perspectiva adotada por Clóvis Moura, cf. PAIVA, 1976, p. 59.
7
Neste ponto, concordamos com Vanilda Paiva, para quem, há uma mudança na forma de exposição do racismo. Há
o Oliveira Vianna de Populações Meridionais e do Idealismo da Constituição que analisamos e o: "Oliveira Vianna
mais influente nas últimas décadas, ou seja, aquele que evitou as formulações racistas explícitas e passou a analisar a
sociedade brasileira, mantendo-as subjacentes, mas cuidando de evitar a sua identificação imediata.” PAIVA, 1976, p.
58.
8
“Um livro como O idealismo da Constituição, criticado por Batista Pereira, nem mesmo poderia ser considerado
obra histórica. Era obra de publicista, de propagandista, de panfletário. Fica aí evidente que Oliveira Viana estava
muito distante da prática historiográfica de seus colegas do Instituto Histórico. Além de depender de conjecturas, a
história não seria um exercício ocioso. Ela teria finalidade pragmática. Na conferência do Instituto esta finalidade foi
descrita como a busca do sentimento de nós mesmos, do fortalecimento do patriotismo.” CARVALHO, 1991, pp. 84-
85.
9
2003; HESSE, 1991.
10
2001.
11
HABERMAS, 2002, p. 150.
12
QUIJANO, 2009, p. 74, grifos nossos.

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