A autorização de trabalho artístico infantil: limites e competência para autorização

AutorFausto Siqueira Gaia
Páginas127-133

Page 127

1. Introdução

O desenvolvimento da economia global, ao mesmo tempo em que promove o incremento dos meios de produção e a evolução da economia capitalista, amplia, especialmente nos países periféricos, o índice de desigualdades sociais, oriundo da concentração de renda.

Esses desequilíbrios sociais são decorrentes de um sistema de produção que objetiva maximizar os lucros em detrimento das condições em que as riquezas são produzidas.

A precarização do trabalho, como é exemplo a exploração do trabalho infantil, em muito contribui para o desenvolvimento dessas desigualdades, já que permite a exploração de uma mão de obra abundante, de baixa qualificação, barata e muitas vezes submetidas a riscos sociais, reduzindo, dessa forma, os custos envolvidos na produção de bens e serviços.

Pode parecer paradoxal, mas o aumento da produção de riquezas de uma nação não necessariamente tem o condão de gerar o incremento do desenvolvimento da sociedade. Em países periféricos como o Brasil1, o trabalho infantil ainda é visto em diversos setores produtivos, como, por exemplo, a agricultura, pecuária e o comércio familiar.

Essa chaga social, que alija o trabalhador infantil da escola e das oportunidades de crescimento e de desenvolvimento pessoal e profissional, provoca danos não apenas ao desenvolvimento da criança ainda em formação, mas sobretudo com reflexos em todo o tecido social.

O trabalho infantil deve ser duramente combatido e tido, nas hipóteses autorizadas por lei, como excepcional. Não raramente, essas crianças trabalhadoras são vítimas do próprio trabalho, diretamente sendo lesadas em acidentes, violações de direitos, e, indiretamente, sendo afastadas das oportunidades de desenvolvimento e crescimento como pessoa humana sujeita de direitos e com proteção constitucional.

Não obstante a presença de um sentimento geral na sociedade de não se tolerar o trabalho infantil, observam-se, em determinadas atividades, como aquelas de cunho artístico e de entretenimento, que o mesmo é estimulado, inclusive pelos pais e guardiões desses menores trabalhadores.

O trabalho infantil, mesmo em atividades de cunho artístico ou lúdico, deve ser limitado, já que não se pode olvidar que esse trabalhador ainda está em fase de formação física, moral e psicológica, o que poderá ocasionar danos irreversíveis ao seu desenvolvimento.

Nesse cenário, onde cada membro da sociedade não deve ser tratado como um ser isolado (KROHLING, 2011, p. 86), nasce o presente trabalho que tem por objetivo analisar os limites e as possibilidades para a autorização do trabalho infantil artístico, bem como investigar a definição da competência para a expedição de alvará que autorize a realização desses trabalhos.

Page 128

Serão investigados, no presente artigo científico, quais são os limites e possibilidades para a autorização do trabalho artístico infantil, a partir da Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho, e que entrou em vigor no Brasil em 28 de junho 2002 por meio do Decreto n. 4.134/2002, e qual a competência para a autorização desse tipo de trabalho por crianças e adolescentes.

A partir de pesquisa exploratória e qualitativa, será investigado, em um primeiro momento, o sistema de proteção contra o trabalho infantil na legislação nacional e internacional, especialmente nas convenções da Organização Internacional do Trabalho.

Ainda, nesse momento do estudo, far-se-á, a partir do método fenomenológico, a investigação da essência do trabalho infantil e a necessidade do olhar o outro no seu rosto, colocando-se em seu lugar, como descreve Emmanuel Levinas (1980, p. 37).

Em um segundo estágio do trabalho, serão analisados os limites etários e circunstâncias para a autorização do trabalho infantil, bem como as consequências jurídicas pela sua inobservância.

O estudo, por fim, investigará a competência material para processar e julgar os pedidos formulados em atividade de jurisdição voluntária, com objetivo de autorizar o trabalho artístico infantil, e natureza jurídica desse tipo de autorização judicial.

2. O trabalho infantil na ética da alteridade

A preocupação de combater as piores formas de trabalho infantil é matéria recorrente nas discussões travadas nas sedes de organismos internacionais de proteção ao trabalho, como a Organização Internacional do Trabalho.

Desde o início do século XX, com a promulgação da Convenção n. 5 da OIT, que estabeleceu a idade mínima para o trabalho nas atividades industriais, a fixação de limites etários para a realização de determinadas atividades vem sofrendo alterações ao longo do tempo, sempre no sentido de ampliar esses limites.

Associados à idade mínima para o trabalho, foram ao longo do tempo estabelecidas nas convenções inter-nacionais as condições para que o trabalho do menor de 18 anos fosse realizado validamente.

A questão do trabalho infantil envolve debates multidisciplinares, transcendendo a análise da estrutura familiar e chegando até mesmo a compreensão e ao desenvolvimento de políticas públicas para a garantia e a promoção da saúde e da educação.

O individualismo da pós-modernidade cria o vazio ou a própria negação (FREUD, 2005, p. 72) da realida-de, incompatível com a prioridade que deve ser dada à erradicação das piores formas de trabalho infantil. A criação de limites a trabalhos socialmente tolerados, como são aqueles empreendidos em atividades artísticas e de entretenimento, deve ser analisada dentro de uma política pública de controle e de inclusão social.

A preocupação com o trabalho infantil revela a necessidade da sociedade em compreender o outro em suas necessidades e desejos, isto é, em âmbito relacional ou em alteridade.

Descreve Aloísio Krohling (2011, p. 86), ao analisar o fenômeno da ética e da alteridade, que: “nenhum homem é uma ilha isolada. O solipsismo do homem solitário abafa a existência que deseja se levantar, sair para fora, ser-para-o-outro. Não existe emancipação ou libertação na solidão do eu mesmo”.

A alteridade, portanto, representa o encontro das subjetividades, do “eu” com o “outro”, já que ninguém vive de forma isolada, mesmo em uma sociedade individualista da pós-modernidade, onde a rede de proteção aos interesses individuais muitas vezes é mais desenvolvido que o próprio sistema de proteção coletiva.

O combate ao trabalho infantil transcende, dessa forma, a individualidade do trabalhador, mesmo considerado como membro integrante de uma família, para ser tratado como uma questão social, afeta inclusive ao Poder Judiciário, capaz de pautar políticas públicas multidisciplinares para a sua erradicação de forma definitiva.

Inclusive, esse dever fundamental de toda sociedade em tutelar a criança e o adolescente é positivado no art. 227 da Constituição, com redação dada pela emenda constitucional n. 65 de 2010, verbis:

Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O olhar do outro também passa na percepção do locus onde esse menor trabalhador está inserido, inclusive dentro da estrutura familiar. A partir da análise da seara intrafamiliar é possível também estabelecer e compreender as potencialidades contributivas que esse trabalho pode...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT