Trabalho infantil, cultura e sociedade: desafios e o preço do futuro

AutorBruno de Carvalho Motejunas
Páginas155-158

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O cantor e compositor popular maranhense João do Vale escreveu sobre sua infância pobre no interior do Maranhão e os desafios que teve que enfrentar logo cedo. A alma de poeta desse grande artista brasileiro permitiu que sua reflexão fosse além das próprias experiências, servindo como lembrança de como o desamparo e a falta de perspectiva pode afetar o futuro de uma criança.

Na música intitulada “Minha história”, João narra sua visão do que foi crescer sem poder estudar, porque “tinha que trabalhar” vendendo “pirulito, arroz doce, mungunzá”. Nascido pobre e de origem humilde, teve que se contentar em “ver o Zezinho contar”. Cresceu assistindo os amigos mais abastados virarem “doutô”, enquanto ele continuava “joão ninguém”. Sobre essa situação, contentava-se em repetir para si o velho adágio de que “quem nasce pra pataca, nunca pode ser vintém”.

No entanto, a mesma canção lembra que seu talento para a música acabou tirando-o da miséria e do esquecimento do sertão. Feliz consigo mesmo, anuncia em verso e prosa que seus amigos letrados “quando ouvem, um baiãozinho que eu fiz, ficam tudo satisfeito, batem palmas e pedem bis”.

Porém, como poeta que era, João enxergou “mais que os olhos podiam ver”. Com sua sabedoria e sensibilidade, entendeu que seu dom era uma raridade e passou a refletir não apenas sobre sua história, mas a das outras tantas crianças como ele. Sob o olhar peculiar do gênio, resumiu com tristeza e melancolia:

Mas o negócio não é bem eu, é Mané, Pedro e Romão,

Que também foram meus colegas, e continuam no sertão

Não puderam estudar, e nem sabem fazer baião

Pois bem. E quantos são os “Joãos” de nossa história?

Em 12 de junho de 2013, para marcar o Dia Mun-dial Contra o Trabalho Infantil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) publicou uma nota alertando para “os milhões de crianças em todo o mundo envolvidas em alguma forma de trabalho perigoso ou explorador, geralmente à custa da sua saúde, sua educação, seu bem-estar geral e seu desenvolvimento1.

Segundo a UNICEF, cerca de 150 milhões de crianças, com idades entre 5 e 14 anos, ou quase uma em cada seis crianças nessa faixa etária, estão envolvidas em trabalho infantil. Dessas crianças que estão trabalhando, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 7,4 milhões estão envolvidas no trabalho doméstico, “que é desproporcionalmente realizado por meninas”.

No caso do Brasil, as pesquisas também apontam para um elevado número de crianças trabalhando, como é possível observar pelos dados do Censo 20102.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Dados por Amostra de Domicílios (PNAD 2012), há no Brasil mais de 3,5 milhões de crianças e adolescentes com idades entre cinco e 17 anos em situação de trabalho, grande

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parte em atividades insalubres, perigosas e penosas que os expõem a enormes riscos3.

Importante frisar que esse não é um quadro recente no Brasil, tampouco é possível dizer que está restrito a uma determinada região do país. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, “os percentuais variam significativamente, conforme a região ou o estado pesquisado. O percentual de crianças e adolescentes que trabalham sob relação de emprego na região Norte é de 39%. No estado do Amazonas é de 34%. Na região Sudeste ultrapassa os 72%, e no estado de São Paulo chega a 76%4.

Infelizmente, ainda vivemos uma realidade em que é “normal” ver criança e adolescentes trabalhando nas ruas como vendedores, engraxates, vigias de carro ou, pior, vendendo seus corpos ou traficando drogas.

Também é elevado o número de crianças usadas como empregadas domésticas, apesar dessa ser considerada pela OIT uma das piores formas de exploração do trabalho infantil (Convenção n. 182 – Lista TIP). Ora, é inegável que o trabalho doméstico é uma atividade muito desgastante, que expõe a criança a uma série de lesões físicas e psicológicas. No entanto, sob o argumento de “ajuda”, muitas famílias acolhem crianças em suas casas, invariavelmente oriundas de regiões pobres e distantes do interior do Estado. Alegam que elas fazem “parte da família”, mas no fundo nada mais são que serviçais ou babás.

Sobre esse ponto, o antropólogo brasileiro...

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