Soft law, hard law e os mecanismos de combate ao trabalho infantil e escravo no Brasil

AutorDenise de Fátima G. F. Soares Farias e James Magno Araujo Farias
Páginas97-114

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1. Introdução

O trabalho infantil e o trabalho análogo ao de escravo são questões de profundo interesse social e jurídico, estando há tempos enraizados em diversas sociedades pelo mundo, muitas vezes já incorporados com lamentável naturalidade ao culturalismo daquela sociedade, o que dificulta muito a sua erradicação.

O presente estudo abordará a questão do trabalho infantil e escravo, fazendo uma análise acerca de suas origens e das perspectivas para sua eliminação; sob esse aspecto, enfatizaremos a forma como o Brasil tem tratado do tema.

Inicialmente, abordaremos o tráfico de pessoas e a sua utilização para atividades laborais, identificando os elementos caracterizadores do mesmo.

Será apresentado um breve apanhado histórico do trabalho infantil e escravo no Brasil e no mundo; em seguida faremos um apanhado das Convenções e Recomendações internacionais e outras normas garantidoras da tutela de uma vida digna.

A partir dos preceitos da soft Law e da normatização mais rígida da hard Law abordaremos a ocorrência do trabalho infantil e escravo para tratarmos depois dos programas e órgãos envolvidos no combate e fiscalização e erradicação do trabalho infantil e escravo no Brasil.

Por fim, abordaremos os instrumentos que o Brasil vem adotando com o intuito de combater e erradicar o trabalho infantil e escravo, sinalizando a importância dos órgãos cooperados, que juntos buscam atingir as metas propostas, para que ao final do estudo possamos avaliar a eficácia dos instrumentos existentes assim como para analisarmos os dados oficiais e percebermos se houve avanço na diminuição do trabalho infantil e escravo no Brasil.

2. O tráfico de pessoas

A Organização das Nações Unidas, diante do Protocolo de Palermo, define como tráfico de pessoas as seguintes condutas:

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.1

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A prática do tráfico de pessoas está diretamente relacionada com o trabalho infantil e com outras formas laborativas degradantes, como o trabalho escravo e o trabalho clandestino.

O tráfico de pessoas contempla ainda várias face-tas, tais como a exploração sexual, tráfico para a remoção de órgãos ou para o trabalho escravo ou infantil, sendo esta última o objeto do presente estudo. Esta modalidade de tráfico tem como mira pessoas de baixa renda, com pouca escolaridade, submissos a uma economia de consumo e que se veem sem muitas chances diante de uma sociedade capitalista cega.

Os traficados para o trabalho são submetidos ao sistema de escravidão que consiste no “estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos poderes atribuídos ao direito de propriedade”.2 Esses sujeitos são forçados a trabalhar sob a ameaça de sanção, que normalmente consiste em violência física, confinamento, ameaça de morte ao trabalhador e a seus familiares, confisco dos documentos pessoais, podendo assumir natureza psicológica ou financeira.3

Neste contexto podemos observar que o a exploração do trabalho, em especial o trabalho infantil, é uma realidade mundial. Nos quatro cantos do planeta são encontrados menores trabalhando de maneira irregular. A OIT divulgou o Relatório Mundial sobre o Trabalho Infantil 2015, no qual estima que dos 250 milhões de crianças trabalhadoras em todo o mundo, pelo menos 120 milhões de crianças entre 5 e 14 anos de idade trabalham em tempo integral, e as demais trabalham e estudam, além de cumular com outras atividades não econômicas.4

Segundo estudos da OIT, calcula-se que há mais de 5,7 milhões de crianças vítimas de exploração do trabalho no Brasil. O Brasil foi classificado pela ONU como tendo “extremamente elevados os números de vítimas de tráfico para trabalho escravo e forçado”, pois essa realidade vem sendo apresentada em grande número contra bolivianos, peruanos, paraguaios e equatorianos, principalmente, em oficinas de costura e confecção localizadas no Estado de São Paulo.5

Juntamente com as demais normas protetivas e preventivas, o Protocolo de Palermo se apresenta como um instrumento essencial para a imposição de deveres aos Estados, para a edição de leis, assim como para trabalharem com a prevenção, repressão e atendimento às vítimas. No seu art. 9º, estão previstas as obrigações para atingir esses objetivos, prevendo pesquisas, campanhas de informação e de difusão através de órgãos de comunicação, bem como iniciativas sociais e econômicas, incluindo planos e programas com colaboração de organizações não governamentais e com a sociedade civil. E com relação à prevenção do tráfico de pessoas, o Protocolo de Palermo prevê ainda medidas visando à redução dos fatores de vulnerabilidade das pessoas ao tráfico, especialmente mulheres e crianças, através do combate à pobreza, ao subdesenvolvimento e à desigualdade de oportunidades, incentivando a cooperação entre os Estados.

A Legislação Brasileira possui normas penais que contemplam os tipos penais de exploração do tráfico de pessoas de forma direta, tais como o art. 231 do Código Penal6, e o art. 239 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei n. 9.434/977.

Portanto, o tráfico de pessoas é crime responsável pelo desaparecimento de milhares de crianças; mas, além do problema com o tráfico, no Brasil, milhões de crianças e adolescentes ainda trabalham induzidas pelos próprios pais e são privados de direitos básicos como educação, saúde, lazer e liberdades individuais, dificultando assim seu pleno desenvolvimento físico, psicológico e emocional.

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3. Soft law, hard law e a regulação do trabalho

Soft Law designa no Direito Internacional Público as normas que são desprovidas de caráter coercitivo. São normas que se aproximam de um cunho de observância facultativa, ao contrário do que ocorre com as normas jurídicas tradicionalmente mais rígidas, enquadradas no conceito de hard Law.

Valério de Oliveira Mazzuoli diz:

Pode-se afirmar que na sua moderna acepção ela compreende todas as regras cujo valor norma-tivo é menos constringente que o das normas jurídicas tradicionais, seja porque os instrumentos que as abrigam não detêm o status de ‘norma jurídica’, seja porque os seus dispositivos, ainda que insertos no quadro dos instrumentos vinculantes, não criam obrigações de direito positivo aos Estados, ou não criam senão obrigações pouco constringentes.8

Há necessidade de certa contextualização jurídica nesse conceito. A Constituição Federal do Brasil, reproduzindo os termos da Convenção n. 138 da OIT, permite o ingresso no mercado de trabalho aos 16 anos, conforme norma da CLT, excetuando o aprendizado iniciado aos 14 anos, e proibindo o trabalho noturno, perigoso e insalubre para menores de 18 anos (o que atende a Convenção n. 182 e Recomendação n. 190 da OIT)9.

Coadunando com os ideais protetivos do trabalho do menor, em 13 de julho de 1990, foi instituído pela Lei n. 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que busca tutelar as garantias desses menores. Neste sentido, Josiane Rose Petry Veronese e André Viana Custódio aduzem que: “As expressões ‘infância’ e ‘infantil’ serão utilizadas para representar pessoas com idades até 18 anos” 10, ou seja, tais expressões abarcam tanto crianças quanto adolescentes.

Para efeito de configuração do trabalho infantil, o art. 2º do Decreto n. 6.481/200811 prevê que o termo “criança” inclui o menor 18 anos, ao passo que a Lei
n. 8.069/90 diz que criança vai até 12 anos, enquanto adolescente vai de 12 até 18 anos.12

O trabalho infantil pode ser definido como sendo toda atividade econômica realizada por crianças e adolescentes que se encontram abaixo da idade mínima permitida para o trabalho pela legislação brasileira, ou por adolescentes acima da idade mínima, mas com menos de 18 anos, que realizem essa atividade em condições perigosas, que interfiram em sua educação ou que sejam prejudiciais ao seu desenvolvimento psicológico, físico, moral e social.

A relevância sobre o estudo das causas e consequências, visando um combate mais efetivo, decorreu do crescente número de trabalhadores menores em atividades laborais, especialmente nos países subdesenvolvidos, nos quais essas crianças são obrigadas a trabalhar desde cedo para contribuírem com o sustento de suas famílias. No final do século passado, a OIT constatou que o Brasil estava em terceiro lugar no ranking dos países da América Latina em trabalho infantil, perdendo somente par o Haiti e Guatemala.13

Em 2010, na “Global Child Labour Conference”, foi produzido um mapa para alcançar a erradicação das piores formas de trabalho infantil, em conformidade com o Plano de Ação Global. No mundo, em 2010, 115 milhões de trabalhadores estavam insertos nas piores formas de trabalho.

No Brasil, a PNAD – Pesquisa Nacional de Amos-tra em Domicílio (do IBGE), em 1995, apontou que 41,95% da população infantil trabalhava. A PNAD de 2002 apontou brusca redução, ao expor que 8,22% da população infantil era a que trabalhava (entre 5 a 15 anos – 2.988.294 crianças. Ainda que se possa...

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