Bebendo na fonte: examinando o funcionamento dos precedentes vinculantes no common law

AutorCesar Zucatti Pritsch
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho na 4ª Região/RS e Juris Doctor pela Florida International University (FIU)
Páginas27-50
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4. BEBENDO NA FONTE: EXAMINANDO O
FUNCIONAMENTO DOS PRECEDENTES
VINCULANTES NO COMMON LAW
4.1. COMMON LAWNEM TÃO DIFERENTE ASSIMEVOLUÇÕES SEPARADAS A PARTIR DOS
MESMOS INGREDIENTES
Em que pese a hibridização de nosso sistem a tenha trazido natural perplexidade — já
que a consideração de precedentes como tendo normatividade cogente ou vinculante, fontes
primárias de direito, se choca com o que aprendemos nos bancos escolares e em nossa práti-
ca profissional — devemos notar que tal sistema não é incompatível com o nosso, tendo sido
formado a partir dos mesmos elementos que deram origem à tradição romano-germânica.(31)
4.1.1. INÍCIO SIMILAR
Há comparativistas que digam que o direito anglo-saxão é mais romano e mais germâni-
co que o dos próprios países da tradição romano-germânica, afirmação que deixa de parecer
surpreendente quando lembramos que a Inglaterra, após a evacuação das legiões romanas e
a conquista pelos invasores germânicos (anglos, saxões e jutos) passou a ser regida por uma
combinação dos costumes jurídicos germânicos e do direito romano-canônico trazido pelo
clero católico (a partir da cristianização dos anglo-saxões, entre os séculos VI e VII). O clero,
educado juridicamente sob tal sistema de normas, passou a auxiliar na orientação de reis e
nobres, assim como na produção de documentos (registros, ordens, normas), geralmente em
latim, naturalmente influenciando o direito medieval com institutos romanos. Com a tomada
do poder na Inglaterra pelos normandos oriundos do norte da França em 1066, data geral-
mente aceita como início do common law, os mesmos elementos romano-germânicos foram
mantidos. A elite normanda trouxe a língua francesa, que se tornou a língua dominante nas
cortes da nobreza e nos tribunais pelos quatro séculos seguintes, mas manteve em regra o
direito saxão — que não diferia muito daquele praticado no Reino Franco e no Ducado da
Normandia (território vassalo do rei franco). A elite normanda trouxe ainda diversos elemen-
tos do clero franco-normando, que continuaram a propagar o direito romano-canônico, seja
pelas cortes canônicas, seja pela influência junto a reis e nobres. Assim, a distinção entre o
direito continental europeu e o common law não é tanto entre seus elementos formadores
(ou ingredientes), mas sim a proporção ou combinação de suas influências na gestação dos
modelos atuais.
Até a conquista pela Inglaterra pelos normandos, não havia diferenças abissais entre as
regras praticadas nas ilhas britânicas e no continente europeu. Mesmo nas regiões mais for-
temente romanizadas, como Espanha, Itália e sul da França, a invasão dos germânicos gerou
a imposição de suas regras e, embora os conquistadores tolerassem que os romanos conquis-
tados fossem julgados conforme seu estatuto pessoal, pelas regras romanas, o passar dos
séculos e a desorganização decorrente de sucessivas guerras ou invasões (dos mouros pelo sul,
(31) Ademais, é de se ressaltar também que a importação foi apenas parcial, com uma reduzida quantidade
de modalidades de decisão efetivamente vinculante, no mais apenas fortalecendo a tendência de unificação da
jurisprudência, que já vinha sendo traçada nas últimas duas décadas.
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dos vikings pelo norte, e dos húngaros pelo leste) fez com que por volta do século X, ao fim da
alta Idade Média, toda a Europa estivesse mergulhada em situações similares de ruralização,
fragmentação do poder e do direito.
Sendo o common law uma tradição jurídica marcada pela continuidade, com um milênio
de desenvolvimento sem rupturas revolucionárias ou codificações abrogantes, seus traços mais
marcantes são melhor compreendidos quando apresentadas suas raízes históricas. Quando os
normandos radicados no norte da França atravessaram o Canal da Mancha para reclamar o
trono da Inglaterra, em 1066, data comumente aceita como marco inicial do common law,(32)
os habitantes das ilhas britânicas já se haviam regido pelo direito local (celta-bretão), pelo
direito romano, e depois novamente pelo direito local, agora de origem germânica (anglo-
-saxão), situação análoga ao que ocorria na maior parte do continente.(33) Enquanto isso, na
época da conquista normanda, na maior parte da Europa o fragmentado direito feudal local
competia com a jurisdição da Igreja Católica — de crescente atuação em disputas cíveis, com
o emergente direito comercial europeu e, logo a seguir, com o ressurgente direito romano.(34)
Tal situação também passou a ocorrer na Inglaterra, embora em diferentes combinações de
tais influências.
Assim, o common law surgiu em um ambiente onde não havia vácuo normativo nem um
espaço óbvio para o surgimento de uma nova tradição jurídica. Pode o surgimento do common
law ser atribuído a um acidente histórico, a conquista militar da Inglaterra pelos normandos
em 1066, resultando em um dos primeiros Estados europeus modernos com fronteiras defini-
das e governo centralizado, que buscou nos 150 anos seguintes (a 1066 d.c.) alterar a ordem
jurídica para legitimar e afirmar seu poder.(35) Vejamos as principais etapas da gestação do
common law, como uma ilustração de que o que une tal sistema ao civil law, dentro da cul-
tura jurídica do mundo ocidental, é bem maior do que o que separa tais sistemas — tendo em
vista que cada vez mais as jurisdições de common law se baseiam em normas legisladas, e da
mesma forma progressivamente os países de civil law impõem a fixação da jurisprudência.(36)
4.1.1.1. A DESROMANIZAÇÃO DA BRITÂNIA
Quando os romanos se retiraram das ilhas britânicas no século V, levaram em grande
medida suas instituições consigo. Os bretões não haviam sido completamente “romanizados”
mesmo após 350 anos de ocupação e administração romana, surgindo certo vácuo institucional
com a retirada romana. Ademais, quase imediatamente começaram as invasões pelos povos
germânicos jutos, anglos e saxões, respectivamente da Dinamarca e norte da Alemanha,
levando cerca de um século para expulsar a maior parte dos bretões e recolonizar a Inglaterra,
levando suas regras e costumes.(37)
(32) MERRYMAN, op. cit., p. 3.
(33) GLENN, H. Patrick. Legal traditions of the world. 5. ed. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 236.
Glenn utiliza a expressão “Direito Ctônico”, no sentido de um direito nativo, desenvolvido a partir da tradição e
peculiaridades locais, vindo das entranhas da terra. Ibidem, p. 60 e ss. A palavra ctônico ou ctoniano tem origem
grega, relativa aos “deuses que residem nas cavidades da terra,” e ao “culto desses deuses. (Etm. do grego:
khthon)”. Conforme <http://www.dicio.com.br/ctoniano/>. Acesso em: 23 dez. 2015.
(34) Ibidem, p. 236.
(35) CAENEGEN, R. Van. Birth of Common Law, 1988, p. 89, 106, 107 e 110, apud GLENN, p. 237.
(36) Para uma comparação mais direta da situação de desenvolvimento contínuo do common law em contraste
com as rupturas que caracterizaram a evolução do civil law, ver 4.1 Common law — nem tão diferente assim —
evoluções separadas a partir dos mesmos ingredientes.
(37) TUCKER JR., Charles E. Anglo-Saxon Law: Its Development and Impact on the English Legal System. United
States Air Force Academy Journal of Legal Studies, v. 2, 1991, p. 127, 133-34. Para mais informações sobre a

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