Blockchain e responsabilidade civil

AutorMafalda Miranda Barbosa
Ocupação do AutorUniv Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/ University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Páginas797-824
45
BLOCKCHAIN E RESPONSABILIDADE CIVIL1
Mafalda Miranda Barbosa
Univ Coimbra, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/
University of Coimbra Institute for Legal Research, Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra. Doutorada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Sumário: 1. Introdução. 2. Blockchain como uma distributed ledger technology. 3. Block-
chain e responsabilidade civil. 3.1 A responsabilidade contratual. 3.2 A responsabilidade
extracontratual.
1. INTRODUÇÃO
O problema da responsabilidade civil pode, no contexto da inteligência artif‌icial,
emergir a propósito do blockchain e de eventuais danos ocasionados com a sua utilização.
As questões que se levantam não são de simples resolução. A todas as dif‌iculdades que
rodeiam a inteligência artif‌icial acrescem outras, quais sejam as que resultam dessa nova
realidade que são as distributed ledger techonologies. Consoante explicam Dirk Zetzsche,
Ross Buckley e Douglas Arner2, para lá do forte entusiasmo que o blockchain envolve3
e das vantagens que comporta4, há que perscrutar a possibilidade de responsabilização
dos participantes das distributed ledger techonologies. É que, como bem esclarecem, não
obstante seja essa uma das invocações dos mais entusiastas desta tecnologia e não obs-
tante a maior segurança do sistema, há exemplos concretos que evidenciam a necessidade
de saber quem deverá suportar os distributed ledger techonologies losses (DLT losses) e a
responsabilidade pelos danos conexos com o blockchain5. A tarefa anuncia-se, porém,
espinhosa. Várias são as razões para as dif‌iculdades com que o jurista tem de lidar a este
1. Texto originalmente publicado na Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 1, p. 206-244, 2019.
Disponível em: https://revistadireitoresponsabilidade.pt/2019/blockchain-e-responsabilidade-civil-inquietaco-
es-em-torno-de-uma-realidade-nova-mafalda-miranda-barbosa/
2. Dirk A. Zetzsche/Ross P. Buckley/Douglas W. Arner, The distributed liability of distributed ledgers: legal risk of
Blockchain, University of New South Wales Law Research Series, 2017, 1 s.
3. Designadamente, são inúmeros os setores onde a tecnologia se poderia aplicar e onde se reivindica a sua aplicação:
trading, pagamentos globais, depósitos, property, identidade digital e autenticação, compliance, combate ao bran-
queamento de capitais – Dirk A. Zetzsche/Ross P. Buckley/Douglas W. Arner, The distributed liability of distributed
ledgers, 4 s.
4. V.g., a desintermediação dos tradicionais intermediários, maior segurança e transparência, maior ef‌iciência e rapi-
dez, diminuição dos custos de transação, aumento do acesso ao mercado – cf. – Dirk A. Zetzsche/Ross P. Buckley/
Douglas W. Arner, The distributed liability of distributed ledgers, 5 s.
5. Cf. Dirk A. Zetzsche/Ross P. Buckley/Douglas W. Arner, The distributed liability of distributed ledgers, 7 s. Pense-se
no exemplo oferecido pelos autores: um ataque informático ocorrido entre 2011 e 2014 determinou a perda de
750 000 clientes de bitcoins e a perda de 100 000 bitcoins propriedade de um japonês. Conforme relatam os autores,
tratou-se de um hot wallet hack, baseado num bug relacionado com a maleabilidade da transação. A verdade é que
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nível: desde logo, porque os dados são, como veremos, distribuídos por vários blocos, a
nova tecnologia com que nos confrontamos pode conduzir a uma dispersão das perdas;
por outro lado, porque, consoante o tipo de distributed ledger techonologies com que se
lide, pode nem sequer ser possível conhecer a identidade dos participantes do blockchain.
Nas páginas que se seguem, procuraremos perceber o que é o blockchain, como
funciona, quais os problemas que faz emergir e em que medida pode ou não desencade-
ar-se uma pretensão indemnizatória procedente por um qualquer dano ocasionado pela
utilização de tecnologias desse tipo. No nosso horizonte discursivo, teremos em mente o
recorte problemático deste novo pedaço de realidade em articulação com a dogmática da
responsabilidade civil, para perceber de que modo esta se mostra ou não apta a resolver
alguns dos problemas que possam emergir.
2. BLOCKCHAIN COMO UMA DISTRIBUTED LEDGER TECHNOLOGY
O blockchain é, como o nome indica, uma lista de blocos (registos) que cresce con-
tinuamente. Estes blocos são registados e ligados entre si através do uso da criptograf‌ia,
viabilizando uma rede peer-to-peer6, baseada numa tecnologia descentralizada. Dito
de outro modo, o blockchain é uma tecnologia descentralizada (distributed ledger), na
qual as transações são registadas anonimamente. O blockchain é, então, um livro
de registos (ledger), no qual se inscreve anonimamente informação, que é multiplicada
ao longo de um ambiente digital (network), que liga os computadores de todos os par-
ticipantes (nodes), e é regularmente atualizada, de tal modo que cada um que participe
nesse network pode conf‌iar que partilha os mesmos dados que o ledger, sem necessidade
de um terceiro centralizado a validar7.
Ocorrendo uma transação digital, ela passa a ser agregada a outras transações,
formando um bloco que é protegido criptograf‌icamente e enviado para todo o ne-
twork8. Mas apenas é agregada se os nodes (membros do network do blockchain, com
um elevado nível de poderes de computação) obtiverem consenso quanto ao bloco
a ser adicionado. Para determinar a validade de um bloco candidato, os utilizadores
(miner nodes) têm de resolver um algoritmo para o verif‌icar. Ao primeiro utilizador
que resolva o algoritmo (miner), validando o bloco, atribui-se uma compensação. Os
novos blocos validados são ligados aos blocos já existentes, formando uma cadeia de
transações, imutável, na qual se pode encontrar toda e qualquer transação efetuada
na história daquele blockchain9.
as perdas ocorridas foram tão profundas que o sujeito em questão, japonês, acabou por ser declarado insolvente.
Também em 2015, o segundo maior transacionador de bitcoins sofreu perdas de 19000 bitcoins, devido a um ataque.
6. Cf. Daniel Fernandes Batalha, Criptocontratação: uma nova forma de contratação automatizada?, Universidade de
Coimbra, 2018, 11 s.
7. Tara Chittenden, The legal implications of distributed systems, The Law Society, 2017, 2 s.; A. Narayanan/J. Bonneau/
E. Felten/ A. Miller/S. Goldfeder, Bitcoin and cryptocurrency technologies: a comprehensive introduction, Princeton
University Press, 2016, 10 s.
A transaction ledger é mantida simultaneamente ao longo de um network de computadores não relacionados entre
si (nodes), como um spreadsheet que é duplicado milhares de vezes num mesmo ambiente de trabalho.
8. Tara Chittenden, The legal implications of distributed systems, 2.
9. Tara Chittenden, The legal implications of distributed systems, 2-3.
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