A boa-fé na contratação de seguros: deveres das partes nas fases de celebração e execução do contrato

AutorMargarida Lima Rego
Páginas495-515
495
22 .
A BO A-F É N A C ON TR AT ÃO DE SE GU RO S:
DE VE RE S D AS PA RT ES NA S F AS ES DE
CE LE BR ÃO E EX EC ÃO DO CO NT RA TO
Margarida Lima Rego
INTRODUÇÃO
As partes num contrato de seguro devem guardar a mais estrita boa-fé nas fases
de conclusão e execução do contrato, tanto a respeito do objeto como das
circunstâncias e declarações a ele concernentes.1 É, pois, no domínio dos seguros
que a vertente objetiva do princípio da boa-fé atinge a sua máxima intensidade.
Outra não poderia ser a consequência da contraposição entre o dever de respeitar
o princípio da boa-fé, que a lei faz aplicar às partes na generalidade dos contratos,
e o seu dever de guardar “a mais estrita boa-fé” quando o contrato em causa seja
de seguros.2
Num contrato de seguro, como em qualquer outro contrato, a boa-fé exerce
três funções: (i) direciona a interpretação do contrato; (ii) é fonte de direitos e de
deveres jurídicos autônomos, acessórios do contrato; e (iii) limita o exercício de direi-
tos decorrentes do contrato.3 Importa, pois, aferir em que se concretiza esta impo-
sição de observância da mais estrita boa-fé, quais as condutas a que as partes estão
concretamente vinculadas na celebração e execução de um contrato de seguro, por
força das exigências do princípio da boa-fé na sua vertente objetiva. É este, precisa-
mente, o propósito do presente artigo. Conclui-se que a boa-fé impõe ao segurador
2 A contraposição resulta do confronto entre aquele preceito e o art. 422º do Código Civil. Cfr. TZIRUL-
NIK, E.; CAVALCANTI, F. Q. B.; PIMENTEL, A. O contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro.
3ª ed., revista, atualizada e ampliada. IBDS e Roncarati, 2016, pp. 110-113.
3 Neste sentido, REsp 1726272/PE (2017/0306501-3), rel. Min. Nancy Andrighi, de 5 de novembro de
2019.
Direito_do_Seguro_Contemporaneo_TOMO-I_(MIOLO)_PROVA-5.indd 495Direito_do_Seguro_Contemporaneo_TOMO-I_(MIOLO)_PROVA-5.indd 495 14/05/2021 16:27:4614/05/2021 16:27:46
MA R G A R I D A L I M A R E G O
496
um ônus de falar claro, resolvendo eventuais ambiguidades, obscuridades ou con-
tradições em favor do segurado. Na fase pré-contratual, a boa-fé impõe deveres
acessórios de lealdade e proteção, designadamente, impondo ao segurador uma
análise cuidada da informação sobre os riscos a cobrir com vista à adequação do
seguro a propor às necessidades e exigências do segurado. Na fase da execução do
contrato, a boa-fé impede que o segurador se prevaleça do seu próprio incumpri-
mento de tais deveres, designadamente, vedando o exercício de direitos em contra-
riedade desleal com a sua conduta anterior.
I. A BOAFÉ NA CELEBRAÇÃO DE UM CONTRATO DE SEGURO
a) Deveres acessórios de lealdade e proteção de parte a parte
Há deveres que emanam do princípio da boa-fé na sua vertente objetiva, que
se posicionam como deveres acessórios relativamente às obrigações principais. Os
principais deveres acessórios são os deveres de lealdade e de proteção de parte a
parte, dos quais todos os demais derivam. No contexto da celebração de um con-
trato de seguro, tais deveres impõem, antes de mais, a ambas as partes deveres de
transparência, de partilha de informação relevante para a celebração do contrato,
na fase pré-contratual: o tomador do seguro deve prestar ao segurador informação
relativa ao objeto do seguro, para permitir a avaliação do risco; o segurador deve
prestar ao tomador do seguro informação relativa ao seguro, para sua compreen-
são do produto.
É inquestionavelmente o segurador quem conhece os termos do serviço que
oferece. É ele quem sabe quais as coberturas que oferece e qual o exato alcance de
cada uma. O segurado conhece a sua esfera prática e é quem tem acesso direto ao
bem exposto ao risco; é ele quem está em melhores condições de fornecer infor-
mação prática, não especializada, sobre este bem e o interesse que tem sobre ele, e
indicar o espectro de proteção que quer obter.
Todavia, antes mesmo de surgir o dever do segurador de informar os seus
clientes, potenciais segurados, do exato alcance de cada uma das coberturas dos
produtos que disponibiliza ao mercado, é ao segurador que cabe conceber tais pro-
dutos. Explicando um pouco melhor este raciocínio: muito frequentemente, na
vida prática, os contratos que celebramos são meros veículos jurídicos de que as
partes se servem para a aquisição do que verdadeiramente lhes interessa – o for-
necimento de um produto, bem ou serviço. Sucede, porém, que, no domínio dos
Direito_do_Seguro_Contemporaneo_TOMO-I_(MIOLO)_PROVA-5.indd 496Direito_do_Seguro_Contemporaneo_TOMO-I_(MIOLO)_PROVA-5.indd 496 14/05/2021 16:27:4614/05/2021 16:27:46

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT