Botocudos, atingidos e extrativismo: ensaio sobre a estranha ordem geométrica da territorialização do capital nos territórios de Barra Longa (MG)/Botocudos, affected people and extractivism: essay on the strange order of the capital territorializaton at Barra Longa's territories.

AutorUchimura, Guilherme Cavicchioli

Barra Longa (MG) é uma das cidades atingidas pelo rompimento da Barragem de Fundão, estrutura geotécnica integrada aos meios de produção das mineradoras Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda. colapsada em 5 de novembro de 2015. Trata-se do único território urbano pelo qual os destrutivos rejeitos passaram e permaneceram. Buscaremos discutir neste ensaio em que medida as disputas em torno do planejamento da produção social do espaço, intensificadas após o soterramento por rejeitos minerários de vias, edificações, espaços públicos e espaços comunitários dos territórios barralonguenses, são também possÃÂveis ecos dos violentos métodos de acumulação originária do capital.

Hoje com uma população estimada em 4.905 habitantes, (1) pode-se dizer que Barra Longa se situa precisamente no fim da estrada de um regime colonialmente globalizado de acumulação capitalista. Quando se chega ao território barralonguense, ponto da malha rodoviária até hoje não alcançado pelos serviços de transporte de tipo empresarial, há a impressão de que só resta vereda de asfalto para voltar; quer dizer, não era comum que a cidade fosse atravessada por acidente ou como momento de mera passagem.

O caso é que, revolvido pela onda de rejeitos em 2015, atualmente este mesmo espaço marginal ao processo produtivo da indústria extrativa concentra um conjunto de relações sociais conflituais altamente complexo, tendo a sua situação pós-desastre já se tornado objeto da atuação extensionista universitária, a exemplo do GEPSA--Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais da UFOP--Universidade Federal de Ouro Preto, e de investigações focais de diversas áreas do conhecimento. (2)

O caso é que ainda há muito sobre Barra Longa a ser contado, investigado e compreendido, até porque as situações de conflito entre as populações atingidas e as empresas mineradoras permanecem ali presentes de modo intensivo e dinâmico com o lento e inacabado processo de reparação em curso.

Diante de tal contexto, o presente ensaio, com reconhecimento de sua provisoriedade e seu caráter aproximativo, reúne notas de pesquisa compartilhadas sobre a situação das populações atingidas de Barra Longa, cujo aprofundamento se deu na tese de doutoramento de Uchimura (no prelo) e a partir do qual os demais autores procuram refletir, cada qual contribuindo com seus acúmulos investigativos.

Não conhecemos ainda um esforço cruzado de análise do estado conflitual em que se encontram os territórios barralonguenses e de reconstrução da história originária do povoado da setecentista Barra de Matias Barbosa, tal como pretendemos aqui ensaiar. Nesse sentido, um dos mais antigos registros dos conflitos coloniais que conformaram historicamente o ribeirinho território barralonguense está no livro Viagens ao Interior do Brasil, raro registro cartográfico da conexão entre tal cidade e o extrativismo aurÃÂfero colonial pela perspectiva etnocêntrica do mineralogista inglês John Mawe. (3) Tal obra foi editada e publicada pela primeira vez em 1812 na Inglaterra. Nela, entre outras veredas do sertão mineiro, o viajante inglês relatou sua passagem pela então denominada São José de Barra Longa em 1809. Buscaremos, na sequência, analisar os registros narrados nesta fonte bibliográfica desde a "visão dos vencidos", para lembrar narração asteca da conquista colonial, reconstruÃÂda por Miguel León-Portilla (1987) ou, ainda, fazendo remissão às famosas teses Sobre o Conceito da História de Walter Benjamin (2012: 243-245), assumindo a "tarefa de escovar a história a contrapelo" em busca da captura de um passado "como imagem que relampeja irreversivelmente".

Nosso propósito é o de, confrontando a atual situação de parte dos territórios barralonguenses com a história de sua violenta gênese capitalista, identificar elementos que aproximem a história destes territórios àhistória mundial da ascensão do capital rumo àinfiltração dos pressupostos do valor em todos os poros planetários. Buscaremos apresentar elementos históricos relacionados àcondição mineral pela qual foram colonizados os territórios barralonguenses, apontando para o fato de que a expansão extrativista (expressão utilizada em sentido amplo, atribuindo-se a ela a caracterÃÂstica industrial-capitalista) sobre estas áreas foi marcada "com traços de sangue e fogo"--para lembrar uma expressão do discurso metafórico de Marx (2014: 787)--e desde logo com a resistência dos povos que ali estavam quando o homem branco chegou, em busca de ouro. O que nos interessa, mais precisamente, é identificar um ponto em comum entre situações conflituais historicamente distintas ocorridas no mesmo espaço de modo a ressaltar a continuidade e a permanência do antagonismo entre a violência que caracteriza a expansão territorial do capitalismo e a resistência contra o engolfamento de tudo pelo capital.

  1. A cidade atingida: os territórios de Barra Longa atravessados pelo capital

    O registro no imaginário brasileiro da cidade de Mariana (MG) como a referência metonÃÂmica por excelência para se falar sobre o rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015, de algum modo oculta a dimensão colossal deste desastre-crime empresarial, fenômeno geotécnico sem precedentes na história brasileira. Os mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos da exploração econômica do minério de ferro acumularam um profundo e incomensurável deslocamento dos modos de vida das múltiplas populações viventes em enlaçamento territorial com a bacia do rio Doce e com o litoral capixaba. Falamos não apenas de Mariana, mas de um conjunto complexo de pelo menos 43 municÃÂpios (cf. MILANEZ et al, 2015).

    Um dos territórios atravessados por esta imensa massa de barro liquefeito--mecanicamente destrutiva e sanitariamente tóxica--foi o de Barra Longa, municÃÂpio da Zona da Mata do estado de Minas Gerais.

    Na tarde de uma quinta-feira, chegou aos barralonguenses a surreal notÃÂcia de que uma montanha de rejeitos havia sido desfeita, e vinha uma avalanche descendo o rio Gualaxo do Norte, já com muitas mortes. Não se passaram mais do que algumas horas até os rejeitos cruzarem as fronteiras municipais do território barralonguense, devastando pela madrugada o centro urbano da cidade, destruindo casas e espaços comunitários, como os da comunidade de Gesteira, e deixando uma poeira tóxica indefinidamente presente no solo, na água e no ar.

    Quatro dias depois, foi encontrado na cidade o corpo de uma das vÃÂtimas mortas por soterramento (PORTO; RAMOS, 2015). Por ação da Samarco, a lama podre recolhida das calçadas foi depositada no campo de futebol da cidade (ALVES, 2017), sendo parte usada na pavimentação das vias públicas (SAMARCO, 2016). Representando a morte dos locais comuns de encontro popular, a Praça Lino Mol, cartão postal de Barra Longa, foi arrasada. Situado às beiras do Rio do Carmo, no núcleo central da cidade, este local histórico e de intensa ritualização da vida ficou interditado por cerca de um ano. Reformada, a praça foi uma das primeiras obras entregues no contexto da reparação. No entanto, de acordo com o relato de uma das moradoras de sua proximidade, ela simplesmente "perdeu seu encanto". (4)

    A partir do dia seguinte ao rompimento da Barragem de Fundão, aportaram na pequena cidade ribeirinha massivos fragmentos da metrópole, antes tão remotos e distantes. Barra Longa tornou-se marcada pela presença agitada e constante de arquitetos, engenheiros, planejadores, gestores, técnicos, operadores de maquinários e trabalhadores da construção civil em geral. Além disso, tratores operando incessantes demolições e reedificações, caminhões de carga removendo lama de rejeitos ou trazendo materiais de construção, veÃÂculos potentes identificados por marcas nunca antes vistos naquelas vias, drones mapeando o espaço terrestre desfigurado e reconfigurado pela produção mineradora, todo este movimento inabitual transformou a cidade em um grande e barulhento "canteiro de obras" (ALVES; SANTOS, 2016), expressão bastante significativa que aqui ecoamos a partir de sua recorrência nos relatos de barralonguenses atingidas e atingidos.

    O território de Barra Longa tornou-se dominado pela perspectiva empresarial da gestão e da produção de um espaço urbano desfigurado. O léxico dos efeitos sociais do rompimento da Barragem de Fundão se alterou a partir do ano de 2016, com o advento do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). A Fundação Renova, máscara jurÃÂdica das mineradoras violadoras Samarco, Vale e BHP Billiton, passou a gerir a governança das medidas de reparação na extensão da bacia do rio Doce. Daàa perceptÃÂvel situação de deslocamento espaço-temporal do povo barralonguense diante da presença massiva de gente estranha, de fora, estrangeira, desconhecida. A cidade, como era, encontra-se em estado de suspensão ou, até mesmo, dissolução.

    Além disso, a experiência urbana de Barra Longa está intimamente atrelada àpassagem do rio do Carmo pela zona urbana e pela união dele com o rio Gualaxo do Norte. à o encontro destes afluentes, aliás, que cria a paisagem geográfica responsável pelo nome da cidade: a barra. (5) As águas seguem seu curso até que confluem com o rio Piranga para originarem o imponente e volumoso rio Doce. Em referência ao...

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