Princípios da política brasileira de segurança alimentar e o acordo sobre agricultura da OMC.

AutorRafael Rosa Cedro
Páginas255-280

Page 255

1 Introdução

País de grandes contradições1, o Brasil ainda apresenta, em pleno início de século XXI, situações de desenvolvimento socioeconômico incompatíveis com o seu nível de renda e capacidade produtiva. Ao mesmo tempo em que é celebradoPage 256 como maior exportador líquido mundial de alimentos, o país convive com a fome e a pobreza, não apenas nas cidades, mas também no campo.

A política de Segurança Alimentar e Nutricional no país passou por relevantes transformações conceituais no passado recente. Esse processo culminou com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), Lei Nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. A LOSAN está assentada fundamentalmente em dois princípios centrais norteadores: o direito humano à alimentação e a soberania alimentar.

A junção desses dois princípios foi estabelecida formalmente, colocando-se a preservação da soberania em termos de políticas públicas e decisões relativas ao sistema alimentar como um requisito para se alcançar o direito humano à alimentação. Essa forma como os dois princípios foram vinculados teve como objetivo principal garantir o espaço necessário, frente à crescente institucionalização do direito econômico internacional, para uma política de Estado que atacasse ao mesmo tempo as questões do combate à fome e o combate à pobreza rural.

Nesse contexto, é reservado um papel de destaque às ações públicas de incentivo à Agricultura Familiar, uma vez que esta é a responsável pela maior parte da produção dos alimentos que são consumidos internamente no Brasil e também em outros países em desenvolvimento. Essa importância é ainda amplificada quando se toma em consideração o potencial gerador de emprego e renda desse segmento socioprodutivo.

O Acordo sobre Agricultura da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi instituído tardiamente, quando se analisa o seu surgimento no contexto da evolução do sistema internacional de regras para o comércio global. Dentre os princípios do Acordo sobre Agricultura da OMC, está centralmente a perspectiva de redução progressiva das ações e margens de política, dos Estados nacionais, que possam de alguma forma interferir com o funcionamento do livre-mercado.

O que este texto buscará destacar é que há uma contradição entre o objetivo pretendido pelo princípio geral do Acordo sobre Agricultura da OMC e aqueles definidos pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar do Brasil, além de uma questão de injustiça para com os países em desenvolvimento. Enquanto a LOSAN enfatiza a importância de preservação da capacidade dos Estados nacionais de definirem as suas próprias políticas de incentivo à produção de alimentos, o Acordo sobre Agricultura da OMC leva todos os Estados MembrosPage 257 daquela organização a terem que relativizar o seu grau de soberania em termos alimentares. Essa relativização, no entanto, ocorre de forma desequilibrada em favor dos países desenvolvidos, especialmente Estados Unidos e União Europeia, que tiveram papel fundamental na redação do Acordo sobre Agricultura atualmente em vigor.

2 Contexto recente e os princípios norteadores da política de segurança alimentar do Brasil

Ainda que discutida de alguma forma no Brasil a cerca de 70 anos2, e tendo sido objeto de experiências dispersas em termos de políticas públicas, especialmente nas últimas duas décadas, a temática da Segurança Alimentar, bastante demandada pelos movimentos populares e organizações da sociedade civil, entrou efetivamente na pauta de governo enquanto ação integrada a partir de 2003.

Naquele ano, teve início a implementação do Programa Fome Zero, nome popular com o qual foi batizada a Política de Segurança Alimentar e Nutricional do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva3.

Os princípios que têm orientado a Política de Segurança Alimentar e Nutricional do Governo Lula, e que foram ratificados pela II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em Olinda (PE), em março de 2004, configuram-se, em essência, como as perspectivas da alimentação como um direito humano fundamental e da soberania alimentar4.

Page 258

A união desses dois princípios tem como objetivo garantir não só o acesso universal e permanente pela população do país a alimentos de qualidade, respeitando-se a diversidade cultural e os aspectos de equidade de gênero e etnia. Visa também possibilitar a vinculação da estratégia de combate à fome ao incentivo à produção de alimentos internamente pela Agricultura Familiar5.

Em setembro de 2006, esses princípios básicos foram consolidados em uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional(LOSAN), de forma a nortear o funcionamento mais permanente de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no país6.

Os principais acontecimentos que precederam essa consolidação em lei foram a ampla mobilização social associada a um momento de forte disposição política em relação à questão do combate à fome e à pobreza7. Essa bandeira foi exaltada já no discurso de posse do então presidente eleito, em 1º de janeiro de 2003.

Naquele momento, foi institucionalizada a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (doravante “CONSEA”)8 e o fortalecimentoPage 259 de instâncias governamentais e de diálogo com a sociedade civil envolvidas na formulação e operacionalização da política de Segurança Alimentar do país9.

Por sua vez, o meio rural brasileiro apresenta, ainda no começo do século XXI, contradições de um país com elevada produção agrícola que, no entanto, se vê obrigado a enfrentar situações de pobreza extrema e fome no próprio campo. Situação esta que se adiciona a toda a pobreza verificável nas áreas urbanas.

Ao se analisar a distribuição de pessoas extremamente pobres, por situação de domicílio, nos cem municípios brasileiros com maior proporção de pobres, constata-se uma predominância de 62% destas pessoas no meio rural10. Estima-se adicionalmente que 1,6 milhões de um total de 4,1 milhões de famílias de agricultores e agricultoras familiares encontram-se abaixo da linha de pobreza. Por fim, um total de 18,9 milhões de pessoas no meio rural do país vivem em algum grau de insegurança alimentar11.

A conceituação formal de agricultor ou agricultora familiar no Brasil é dada pela Lei Nº 11.326, de 24 de julho de 2006, conhecida como “Lei da Agricultura Familiar”12. Essa lei estabelece a conceituação oficial de Agricultura Familiar para ser utilizada do ponto de vista das políticas públicas nacionais. Os quatro elementos centrais definidos por essa lei para tal conceituação são: (i) não deter, a qualquer título, área maior do quePage 260 quatro módulos fiscais13; (ii) utilizar predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do estabelecimento ou empreendimento; (iii) ter renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; e (iv) a direção do estabelecimento ou empreendimento ser realizada pela própria família14.

Em termos quantitativos, a Agricultura Familiar responde por 76,9% dos postos de trabalho no meio rural do Brasil, com um total de 13,8 milhões de pessoas ocupadas. Destaca-se que isso corresponde a 18,8% da população economicamente ativa. Assim, a Agricultura Familiar caracteriza-se, não apenas como a principal fonte de ocupação no campo, como também no conjunto da economia do país15.

Apesar de ocupar apenas 30% das terras e receber somente 25% do financiamento à produção, a Agricultura Familiar é responsável por 38% do valor bruto total da produção agropecuária no Brasil16. Quanto à produção para fins alimentares, esse segmento produtivo responde por 70%, ou seja, a maior parte dos alimentos que são consumidos pela população do país17. Dentre alguns dos principais alimentos da cesta básica nacional, a Agricultura Familiar responde pela produção interna de 85% da mandioca, 75% da cebola, 74% dos suínos, 70% do feijão, 70% do frango e 69% das hortaliças18. Assim, além de um importante peso socioeconômico, essa agricultura de pequena escala apresentaPage 261 uma relação bastante estreita com a questão da segurança alimentar e nutricional da população no Brasil.

Com relação ao conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (doravante “SAN”), o debate no País vivenciou uma relevante divergência de concepção e princípios, especialmente entre os órgãos do governo, cujas competências legais estão mais diretamente relacionadas à produção de alimentos, ao abastecimento e à efetivação do direito humano à alimentação da população19. Essa divergência se tornava especialmente mais explícita quando a discussão transbordava para a arena das negociações dos tratados internacionais de comércio. Assim, ao longo do primeiro mandato do Governo Lula (2003-2006), houve uma disputa e uma grande indefinição em torno do conceito de SAN a ser efetivamente adotado do ponto de vista da formulação da política comercial externa.

Por um lado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), durante todo aquele primeiro mandato, defendeu a adoção de um conceito de segurança alimentar que fosse amplamente baseado na abertura dos mercados mundiais alimentares20. Partindo desse ponto de vista, não haveria uma relação mais forte entre a garantia da segurança alimentar interna e o desenvolvimento de uma política de desenvolvimento rural que visasse fortalecer a Agricultura Familiar e a produção destinada ao mercado nacional. Partir-se-ia, então, do princípio de que qualquer necessidade alimentar, em tese, poderia ser suprida por meio do comércio com outros países. Assim, o Brasil poderia se especializar na produção de algumas poucas commodities, focando aquelas em...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT