A caminho de um direito civil-constitucional

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas3-20
A caminho de um direito civil-constitucional*
1. Sobre a noção de direito civil: dificuldades concei-
tuais e transformações. A importância do Código Napo-
leão; a chamada “publicização” do direito civil; a con-
cepção moderna. 2. A unidade do ordenamento jurídico
e a superação da clássica dicotomia direito público x
direito privado. Os novos termos da questão: distinção
meramente quantitativa. A prioridade dos valores exis-
tenciais. 3. Natureza jurídica da normativa constitu-
cional. Sua hierarquia e seu papel na teoria das fontes.
A aplicação direta da Constituição. O “direito civil
constitucionalizado”. 4. Aplicação direta da Constitui-
ção às relações interprivadas. Hipóteses de aplicação na
doutrina e na jurisprudência.
1. Sobre a noção de direito civil: dificuldades conceituais e
transformações. A importância do Código Napoleão; a chamada
“publicização” do direito civil; a concepção moderna
Convém, inicialmente, examinar o conceito de direito civil. A
tarefa, que parece simples à primeira vista, suscita certo embaraço,
diante das controvérsias em torno de uma unidade conceitual,
* Versão original publicada em Direito, Estado e Sociedade. Departamento de
Direito da PUC-Rio, n. 1. Rio de Janeiro, 1991 (2. ed., 1996), p. 59-73, e na
Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, v. 17, n. 65. Rio de
Janeiro, jul.-set. 1993, p. 21-32.
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“compreensiva de suas genuínas funções”.1 O jurista, tanto mais o
civilista, sabe que a noção se explica melhor através da história das
instituições do que mediante uma discriminação racional de con-
teúdo.2 Reconhece-se como insuficiente, desde logo, a mera repe-
tição de antigos enunciados superados pelo tempo, impondo-se a
necessidade de se focalizar a moderna fisionomia do direito civil.
Entende-se tradicionalmente por direito civil aquele que se
formulou no Código Napoleão, em virtude da sistematização ope-
rada por Jean Domat3 — quem primeiro separou das leis civis as
leis públicas —, cuja obra serviu para a delimitação do conteúdo
inserto no Code;4 conteúdo que, em seguida, viria a ser adotado
pelas codificações do século XIX.5
O direito civil foi identificado, a partir daí, com o próprio Có-
digo Civil, que regulava as relações entre as pessoas privadas, seu
estado, sua capacidade, sua família e, principalmente, sua proprie-
dade, consagrando-se como o reino da liberdade individual. Conce-
dia-se a tutela jurídica para que o indivíduo, isoladamente, pudesse
desenvolver com plena liberdade a sua atividade econômica. As
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1 SERPA LOPES. Curso de direito civil, v. I. 2. ed. São Paulo: Freitas Bastos,
1955, p. 27.
2 É o que adverte René SAVATIER. Du droit civil au droit public. 2. ed. Paris:
L.G.D.J., 1950, p. 3. Assinala a evolução histórica do conceito HERNÀNDEZ GIL,
El concepto del derecho civil, citado por SERPA LOPES. Curso de direito civil, cit.,
p. 28. Ver também Caio Mário da SILVA PEREIRA. Instituições de direito civil, v.
I. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 15 e ss.
3 Le leggi civili nel loro ordine naturale, 7 v. Trad. it. A. Padovani. Pavia: Tip.
Bizzoni, 1825.
4 Ao contrário do que se deduz vulgarmente, não provém do direito romano
aquela delimitação de conteúdo. No direito romano, o jus civile, o direito dos
cidadãos, era essencialmente uma noção de direito público. O cidadão romano
opunha-se ao escravo e ao peregrino, e os seus direitos eram, no fundo, privilé-
gios de direito público: ver René SAVATIER. Du droit civil au droit public, cit.; e
Caio Mário da SILVA PEREIRA. Instituições de direito civil, cit., p. 16.
5 A influência do Código Civil francês não necessita de maiores comprova-
ções, encontrando-se bem resumida na frase de Louis JOSSERAND: “Une ère
nouvelle s’ouvrait pour le Droit privé, non seulement en France mais dans presque
toute l’Europe, on pourrait dire dans le monde entier, car l’influence exercé par le
nouveau Code se fit sentir, non seulement à l’intérieur de nos frontières, mais à
peu près dans toute la communauté civilisée” (Évolutions e actualités: conféren-
ces de droit civil. Paris: Sirey, 1936, p. 11).

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