Constituição e direito civil: tendências

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas33-54
Constituição e direito civil: tendências*
Se podes olhar, vê; se podes ver, repara.
José Saramago
1. Segurança e incerteza. 2. Constituição e direito civil.
3. O novo paradigma: a pessoa humana e a sua digni-
dade.
1. Segurança e incerteza
Tudo adquire significado somente em relação a determinado
contexto. O escritor italiano Umberto Eco, querendo exemplificar
esta assertiva, imagina uma situação prosaica. Diz ele: se indagar-
mos a uma pessoa normal se é lícito introduzir um instrumento
cortante na barriga de outro ser humano, a resposta deveria ser
negativa; isto é proibido por lei. Se, no entanto, especificarmos que
quem introduz a lâmina é um cirurgião numa sala de operação,
então as pessoas normais estariam dispostas a reconsiderar o caso.
* Versão original publicada na Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 779, 2000,
p. 47-63, e na Revista Direito, Estado e Sociedade. Departamento de Direito da
PUC-Rio, Rio de Janeiro, n. 15, ago.-dez. 1999, p. 95-113.
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Daí o significado (e, portanto, o conhecimento)1 advir sempre do
contexto, e o que parece coisa muito simples, às vezes e por cir-
cunstâncias variadas, pode tornar-se complexa e tortuosa.
É o que vem ocorrendo com o sistema de direito civil. Seus
conceitos essenciais, a parte fundante de sua dogmática, prove-
nientes do direito romano e reelaborados pela pandectística, são,
ainda hoje, exaustivamente repetidos, embora tenham sido cunha-
dos em contexto completamente diferente, talvez mesmo oposto,
ao existente na atualidade. Nessa medida, se os códigos civis, com
a sua aspiração de perenidade e completude, foram frutos de uma
época, a época da segurança, na feliz locução adotada por Natalino
Irti,2 parece possível encontrarmos razões para sintetizar o mo-
mento atual como época de insegurança, época de incertezas.
O sentido de segurança, de acordo com Irti, surgiu das estrutu-
ras profundas da sociedade. A exigência de estabilidade, ou de
previsibilidade, quanto aos comportamentos dos sujeitos passou a
ser o pressuposto intrínseco das relações jurídicas, na medida em
que a burguesia francesa, vitoriosa da Grande Revolução, se tornou
a nova classe dirigente, portadora da tábua de valores na qual toda
a sociedade foi chamada a se reconhecer. O “mundo da segurança”
é, portanto, o “mundo dos códigos”, que consubstanciam, em orde-
nada seqüência de artigos, os valores do liberalismo do século
XIX.3
Neste ambiente, como é fácil perceber, as relações do direito
privado com o direito público estão claramente predefinidas. O
direito privado coincide com o âmbito dos direitos naturais e inatos
dos indivíduos, enquanto o direito público é aquele emanado pelo
Estado e dirigido a finalidades de interesse geral. As duas esferas,
aqui, são praticamente impermeáveis, reconhecendo-se ao Estado
o poder de limitar os direitos dos indivíduos somente por exigên-
cias dos próprios indivíduos. Estas conceituações são o resultado da
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1 Que todo conhecimento seja contextual e, em conseqüência, que toda ciên-
cia deva ser compreendida como prática social de conhecimento, como tarefa
que se cumpre em diálogo com o mundo, é tese sustentada por Boaventura de
Souza SANTOS (Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1989, p. 147 e ss).
2 Natalino IRTI. L’età della decodificazione. Revista de Direito Civil, Imobi-
liário, Agrário e Empresarial, n. 10. Rio de Janeiro, out.-dez. 1979, p. 15.
3 Assim, Natalino IRTI. L’età della decodificazione” cit., p. 16.

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