A incorporação dos tratados sobre direitos humanos na Constituição Federal: dos direitos naturais à Emenda Constitucional n. 45/2004

AutorAstrid Heringer
CargoProfessora do Curso de Direito da URI e de programas e Pós-Graduação Lato sensu em Direito. Mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM.
Páginas95-115

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Considerações iniciais

O objetivo do presente trabalho consiste em investigar o tratamentoPage 96dado, no Brasil, aos tratados de direitos humanos, levando em conta o desentendimento demonstrado, tanto pela legislação e a sua interpretação pelo Supremo Tribunal Federal, quanto pela doutrina especializada no assunto.

Antes de analisar o tema exposto, faz-se uma digressão sobre os conceitos de direitos naturais, humanos e fundamentais.

A motivação para tal estudo encontra respaldo na recente modificação do tratamento do tema através da Emenda Constitucional 45 de 2005. A emenda procurou devolver aos tratados de direitos humanos o lugar de destaque reservado a esses nas constituições dos países mais desenvolvidos e também procurando adequar-se à moderna doutrina sobre o tema. A modificação põe em choque a interpretação dada pelo STF de que esses tratados devem seguir a orientação dos demais, de diferentes matérias, que obrigaria a internalização dos mesmos através de dois processos internos, não bastando apenas o decreto do Executivo, como determina o art. 5º, parágrafo primeiro, da vigente Constituição.

A leitura do artigo poderá conduzir à compreensão de que os tratados de direitos humanos devem ter aplicabilidade imediata por dizerem respeito aos direitos fundamentais do cidadão, assegurados não somente no texto da atual Constituição, como também em seu parágrafo 2º, que reforça a supremacia desses tratados quando a sua proteção seja maior do que a conferida pelo ordenamento pátrio.

1 Antecedentes históricos

A idéia de que existem direitos do homem além da própria lei ou da autoridade remonta à Antiguidade. Nikken cita o exemplo clássico de Sófocles: “

[...] la respuesta de Antígona al reproche de Creón por haber enterrado a su hermano en contra de su prohibición. Antígona respondió afirmando que habia ceñido su actuación a leyes no escritas e inmutables del cielo”2 .

No plano filosófico, esta idéia de respeito aos direitos do homem está presente em Sêneca, segundo o qual é impossível pensar que a escravidão aprisione o homem inteiro, pois a melhor parte do ser escapa à escravidão. Enquanto o corpoPage 97pertence ao amo, a alma é por natureza livre e pertence a si mesma3 .

Manifestação em mesmo sentido pode-se constatar em Epicteto, ao discorrer sobre a fraternidade entre os homens e a igualdade entre os escravos, afirma que se constitui em “una moralidad sublime y ultraterrena; en una situación en la que el primer deber del hombre es resistir al poder tirânico. Seria difícil hallar algo más confortador”4 .

Como antecedentes dos direitos humanos, é indispensável citar também o pensamento cristão e, com ele, a afirmação da defesa radical dos direitos do ser humano, considerado como uma criação à imagem e semelhança de Deus. Decorre daí o entendimento de que, se todos os seres humanos são filhos do mesmo Pai, todos têm direito de um tratamento igualitário. Ressalve-se, no entanto, que nenhuma dessas idéias foi fonte inspiradora ou utilizada pelas instituições políticas ou jurídicas existentes na Antiguidade ou na Idade Média.

Dentro da história constitucional do Ocidente, o primeiro documento significativo que estabelece limitações ao poder do Estado frente a seus súditos foi a Carta Magna de 1215. Essa declaração, juntamente com o instituto do Habeas Corpus de 1679 e o Bill of Rights de 1689, constituem-se nas principais declarações precursoras das modernas declarações de direitos existentes em todo o mundo.

2 Uma definição de direitos fundamentais

Partindo-se de uma retrospectiva sobre os entendimentos incipientes na história sobre direitos humanos, chega-se ao moderno conceito de direitos fundamentais.

A utilização da expressão “direitos fundamentais” é relativamente recente na história do Direito Constitucional. Não é, como se poderia imaginar, que os direitos fundamentais, através dessa expressão, surgem no mesmo momento de criação do Estado Constitucional europeu. Ao contrário, nascem depois.

A utilização do termo, tal como o conhecemos hoje, passou a ser utilizado posteriormente à primeira Guerra Mundial, reafirmando-se após a segunda GrandePage 98Guerra. Deste momento surge a incorporação gradativa do regime internacional de proteção dos direitos humanos.

A Alemanha, através do termo Grundrechte, utiliza a sua versão de direitos fundamentais na Constituição de 1848. Os direitos fundamentais do povo alemão são um dos elementos marcantes daquela que foi considerada a constituição mais “radicalmente liberal” e com certa “projeção democrática” de todo o século XIX. Esse dado é importante para o esclarecimento da significação dos direitos fundamentais, pois eles só poderão existir quando preexiste o princípio da soberania popular.5

A expressão foi utilizada por pouco tempo, uma vez que a vigência dessa Constituição foi bastante curta. O termo voltou a ser utilizado na Constituição de Weimar, após a segunda Guerra Mundial, na conhecida 2ª parte chamada “Direitos fundamentais e deveres fundamentais dos alemães”. O termo volta a ser utilizado, desta vez na primeira parte da Lei Fundamental de Bonn, em 1949. A partir daí a expressão definitivamente consolida-se no direito alemão, bem como essa denominação passa a ter destaque e referencial, ganhando “dimensão européia”, conforme Peter Häberle. Dentre as constituições que adotam essa terminologia está a Constituição Espanhola de 1978.6

Mas como se explica que a alguns direitos tenha se acrescentado o adjetivo “fundamentais”?

3 Das declarações de direitos à integração destes na Constituição

As declarações de direitos são documentos que externam os direitos à sociedade. As declarações de direitos mais emblemáticas que temos são as de 1776 e de 1789. A primeira é um marco na independização das 13 colônias americanas em relação à sua metrópole e também o início de uma nova forma de organização política. Já a segunda declaração representa o descontentamento e ruptura com o Antigo Regime e o nascimento do Estado Constitucional no continente europeu.

O que pretendiam essas declarações era a definição constitucional e identificação da população de cada um desses estados: é isso o que pretendem asPage 99declarações de direitos, a identificação dos indivíduos que compõem um determinado Estado em cidadãos.

Em muitas outras constituições, anteriores a essas declarações de direitos, houve a utilização dos termos “direitos e liberdades”, mas essas expressões apenas se aplicavam à parte da população que possuía tais privilégios, sendo que grande parte dela ficava excluída de participação em tais direitos. Portanto, nesse caso, o direito é restrito, não sendo aplicável a toda a população de um território.

Essa idéia reforça o entendimento de que os direitos consagrados nesses diplomas legais não são direitos individuais e sim direitos que pertencem a determinadas corporações.

As declarações de direito do final do século XVIII pautam-se na teoria do contrato social, de Thomas Hobbes. Essa teoria, assim como as que a sucederam, de Locke e Rousseau, baseia-se nos pressupostos de que os direitos dos indivíduos são naturais e que o Estado é um ente artificial.

Essa concepção existe porque os indivíduos são iguais por natureza e, portanto, livres para decidir sobre o que fazer. Nessa condição os seres humanos são titulares de todos os direitos, sem limitação alguma, o que caracteriza o estado da natureza.

Se todos os seres humanos são iguais e dispõem de liberdade, que falta faz o Estado? Hobbes pergunta: Por que não pode haver “paz sem sujeição”?7

Hobbes mesmo responde: homo homini lupus. Na natureza humana, com homens que dispõem de todas as liberdades, existem elementos que conduzem a uma constante guerra de todos contra todos. A solução contra essa possível guerra civil permanente é a imposição de um Estado que, minimamente, garanta o uso dos direitos naturais a todos os homens, de forma pacífica. É o que Hobbes denomina como contrato social.8

Assim, o Estado é o mal necessário que os homens devem aceitar para, pacificamente, poder desfrutar de seus direitos naturais. Nesta transição, é necessário que os indivíduos ganhem mais do que estão abrindo mão. Assim, todos devem abrir mão somente daqueles direitos estritamente necessários para a consecução doPage 100Estado, conservando todos os demais.

Por essas idéias é que se inspiraram as declarações de direitos americana, de 1776, e a francesa, de 1789, e que as trazem presentes no decorrer dos seus textos.

Assim, o Bill of Rights de Virgínia, de 12 de junho de 1776, expressa perfeitamente esta idéia:

Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e têm certos direitos inerentes, dos quais, quando entram num estado social, não podem privar ou retirar a sua posteridade mediante nenhum contrato; concretamente o desfrute da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade e perseguir e alcançar a felicidade e a segurança.9

A Declaração Francesa também objetiva transmitir a idéia da declaração americana, reafirmando o propósito de que todos os homens têm direito ao desfrute de seus direitos naturais, cabendo ao Estado apenas a tarefa de dizê-los, reconhecêlos e respeitá-los, já que são indisponíveis para o Estado. Constituem-se, então, como uma lembrança aos indivíduos de quais são os seus direitos e seus deveres para viver em sociedade.

As declarações de direitos são textos pré-constitucionais, uma vez que apenas explicitam...

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