Com quantos golpes se faz uma crise constitucional no Brasil? Constitucionalismo abusivo, estresse constitucional e juridicidade constitucional./With how many strokes does a constitutional crisis take place in Brazil? Abusive constitutionalism, Constitutional stress and constitutional legality.

AutorMagalhães, Breno Baía

Introdução

Nos últimos anos, a atenção de constitucionalistas do mundo inteiro tem se voltado para a crise da democracia constitucional no ocidente (1). As causas da crise e as possíveis vias para sua superação têm sido problematizadas por autores de diferentes origens geográficas, a demonstrar que esta crise não é uma exclusividade apenas das democracias tradicionalmente estabelecidas, como a dos Estados Unidos da América, lar de significa parcela dessa produção acadêmica.

A instabilidade política experimentada pelo Estado brasileiro desde 2013 (NOBRE, 2013, p. 142 e ss.) ganhou contornos dramáticos com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, cujo desfecho alterou a forma pela qual os poderes da república passaram a se relacionar entre si. Por serem órgãos constitucionais que operam mediante regras abstratas que lhes atribuem e distribuem poderes e competências, conflitos e tensões decorrentes da interação entre esses atores indicam crises na interpretação das normas constitucionais.

Constitucionalistas brasileiros buscam entender e explicar a instabilidade política brasileira a partir da abundante produção acadêmica de autores norte-americanos, para quem, mediante termos impactantes ("crises", "apodrecimento", "constitucionalismo abusivo", "jogo duro constitucional"), há fortes razões para desconfiar de que o tranquilo casamento bicentenário entre constitucionalismo e democracia esteja passando por mares revoltos. Esse cabedal conceitual e terminológico estrangeiro foi acolhido por nossa doutrina, em trabalhos que, por conta da urgência contingente ao turbilhão político que acomete o Brasil nos últimos anos, se tornaram pontos de referência obrigatórios para a compreensão de nossa saúde constitucional.

Pretendemos, com esse artigo, mapear os conceitos empregados pelos constitucionalistas brasileiros para explicar o período posterior ao impeachment de 2016 e a recente chegada ao poder do Presidente Bolsonaro, representante da direita populista (2). O trabalho proporá, ademais, a tese segundo a qual o impeachment que derrubou o governo Dilma representou um ponto de inflexão em nosso constitucionalismo democrático, ao redefinir a lógica sobre a juridicidade constitucional.

Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado o método hipotético-dedutivo, a fim de compreender em que medida o processo de impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff foi capaz de inserir novas características acerca do que denominamos, provisoriamente, de juridicidade constitucional. Quanto ao procedimento, adotamos a investigação bibliográfica de abordagem qualitativa, de modo a analisar criticamente como e a partir de quais referenciais teóricos a instabilidade político-institucional brasileira vem sendo apreciada pelos autores nacionais de Direito Constitucional. Com isso, visamos realizar uma pesquisa do tipo explicativa, para compreender o papel do impeachment de 2016 dentro de pensamento de nossos autores e a sua relação com os eventos político-institucionais que se sucederam.

Estruturalmente, o artigo se organiza em três seções. Na primeira seção é realizada uma análise sobre como o conceito de constitucionalismo abusivo, incorporado entre nós desde o impeachment, e teorizado por David Landau, vem sendo abordado e aplicado à realidade brasileira. Em seguida, são explicitados os conceitos de crise constitucional, proposto por Jack M. Balkin e Sanford Levinson, e de estresse constitucional, defendido por Oscar Vilhena Vieira, para a realização de um diagnóstico a respeito da saúde constitucional do Brasil pós-impeachment. Ao final desta seção, destaca-se a insuficiência decorrente da importação de um exame norte-americano para a compreensão da funcionalidade da política constitucional nacional. Na terceira seção, são apresentadas as particularidades do arranjo político-institucional brasileiro, com destaque para as disputas em torno da interpretação constitucional irrompidas a partir do impeachment de 2016, sustentando-se a tese de que o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff possibilitou a redefinição da juridicidade constitucional, de forma a corroborar, sequencialmente: para a alteração (não eleitoral) de projetos de governo e ascensão de um candidato da direita populista à Presidência da República e para o agravamento das disputas interpretativas sobre a Constituição.

1) Constitucionalismo abusivo no Brasil: a mão de qual dos poderes chacoalha o berço democrático?

Landau (2013) propõe a existência de um constitucionalismo abusivo quando instrumentos constitucionais são utilizados para enfraquecer a democracia. As ferramentas que viabilizam o ataque constitucional à democracia são manejadas pelo Poder Executivo na forma de mudanças constitucionais formais (substituição ou emendamento constitucional). O ideal político 'constitucionalismo' é útil para o Governante de turno, pois, ao mesmo tempo em que empreende medidas para tornar o sistema menos democrático, quando, por exemplo, dificulta a atuação da oposição política, ele pode sustentar um suposto ar de legitimidade em função da manutenção de um regime baseado formalmente em um texto constitucional.

As mudanças constitucionais formais feitas pelo chefe do poder executivo cooptam os demais poderes no intuito de atacar pontos estruturais do edifício democrático, afetando, em consequência, a qualidade da democracia constitucional. Estruturalmente, os ataques são endereçados ao campo das disputas eleitorais, principalmente a partir da criação de entraves à formação, manutenção e atuação da oposição política e na limitação de direitos fundamentais das pessoas e de minorias. Ou seja, o governo não se torna autocrático por conta das alterações constitucionais, pois eleições continuariam regulares, entretanto, o constitucionalismo abusivo abriria espaço para um regime híbrido de difícil detecção e combate (LANDAU, 2013, p. 192-197).

No caso brasileiro, um conjunto de autores redirecionam o conceito de constitucionalismo abusivo (3) para qualificar a atuação independente do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, ou seja, mesmo quando esses poderes não estejam cooptados por uma agenda do chefe do Executivo no poder.

No primeiro caso, o processo de impeachment que derrubou, de forma ilegítima, o governo da presidente Dilma Rousseff configuraria uma hipótese de constitucionalismo abusivo, em razão da parca evidência probatória de que Dilma teria cometido qualquer crime de responsabilidade. O fundamento formalmente utilizado para o impeachment de 2016 foi a inadequada utilização de créditos adicionais suplementares e extraordinários como meios de ampliação do poder orçamentário (as popularmente denominadas 'pedaladas fiscais'), muito embora presidentes anteriores tivessem utilizado tais mecanismos com a mesma finalidade, sem que tenham sido alvo de qualquer processo de impedimento (BARBOZA; ROBL FILHO, 2019, p. 93-94).

Nessa esteira, Daniel Capecchi Nunes (2018, p. 55) destaca que o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff se deu, em verdade, pela ausência de apoio político congressual, e não pelo cometimento de um crime de responsabilidade. O golpe parlamentar de 2016, portanto, realizou-se por meio da utilização de mecanismos constitucionais contra a democracia, marcando o fim do ciclo político redemocratizante e o início de outro, cujos contornos ainda são incógnitos (NUNES, 2019, p. 55-57).

Por outro lado, Benvindo e Estorilio (2017) consideram que o STF é o artífice de práticas constitucionais abusivas, perpetradas por meio de critérios, essencialmente, interpretativos. Para os autores, a constituição poderia ser "estrategicamente trabalhada para favorecer agenciadores de interesses durante graves crises políticas" e o STF funcionaria como catalisador desse processo (ESTORILIO; BENVINDO, 2017, p. 176). A interferência na política se daria por meio da sincronicidade e pela prática seletiva da subsunção. A sincronicidade ocorre quando decisões judiciais catalisam crises políticas, muito embora não seja possível fazer uma correlação direta e causal entre o processo em curso no STF, a decisão tomada pela corte e sua consequência política. Já na prática seletiva de subsunção, a corte age de forma abusiva quando falha na aplicação de padrões isonômicos no julgamento de casos semelhantes em um curto espaço de tempo (ESTORILIO; BENVINDO, 2017, p. 183-185) (4).

O desenvolvimento conceitual feito pelos autores nacionais elastece a formulação original de Laundau para abarcar ramos políticos alheios a sua caracterização inicial e instrumentos diversos das reformas constitucionais formais. Portanto, para os autores nacionais, o constitucionalismo abusivo pode ser levado a cabo pelo Poder Legislativo, quando, ao manejar o processo de impeachment, derruba mandatos presidenciais por meio de intepretações controversas sobre a lei de responsabilidade. Mas também, por outro lado, a abusividade pode ser posta em prática pelo Poder Judiciário em ação solitária (5), quando a corte suprema aplica critérios interpretativos cambiantes capazes de afetar a política e quando, por meio de seu poder de pauta, catalisam controvérsias políticas de forma indireta.

Na linha defendida por Ginsbourg e Hucq (2018, p. 92), nos parece que o conceito de "constitucionalismo abusivo" está inserido dentro de um contexto mais amplo de crise da democracia constitucional. Dito em outras palavras, uma crise democrática pode se evidenciar por meio de práticas constitucionais tidas por abusivas, mas não exclusivamente por elas. Se considerarmos, com nossos autores, que no Brasil o uso considerado abusivo de instrumentos constitucionais tem sido usual entre os ramos Legislativo, Judiciário e Executivo (6), o caminho em direção à crise de nossa democrática está patente. Mas, por outro lado, a utilização do termo "constitucionalismo abusivo" pode sugerir que nossos autores estejam chamando nossa atenção para problemas mais graves experimentados por nossa democracia constitucional, ainda...

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