Comissão Nacional da Verdade: verdade tardia, impunidade perpetuada?

AutorAmanda Cataldo
Páginas72-156
72 • Capítulo 3
3. Comissão Nacional da Verdade: verdade
tardia, impunidade perpetuada?
Conforme apresentado no capítulo anterior, a lei 12.528/11
foi votada em rito de urgência na Câmara dos Deputados e apro-
vada de forma unânime pelo Senado Federal. Apesar da urgência
inicial em garantir sua rápida aprovação, depois de sancionada a lei
nº 12.528/11, a instituição da CNV ocorreria em seis meses.
Após manifestações da sociedade civil1, em 16 de maio de
2012, em uma cerimônia solene, que contou com a presença de ex-
-Presidentes da “nova República” e do alto es calão das Forças Ar-
madas, a CNV foi instalada. Na ocasião, a Presidenta destacou que
os nomes dos sete conselheiros haviam sido “escolhidos pela com-
petência e pela capacidade de entender a dimensão do t rabalho que
vão executar” (CNV, Institucional, 16 de maio de 2012).
Por conseguinte, esse último capítulo dedica-se ao funcio-
namento e aos trabalhos desempenhados pela Comissão. Inicial-
mente, serão realizadas notas sobre a lei de instituição da CNV (lei
nº 12.528/11), comparando as possibilidades e as constrições, em
termos normativos, às demais comissões estatais de reparação e à
1
No âmbito da sociedade civil, além das organizações de familiares de ví-
timas do regime que buscam a implementação de medidas relacionadas à
verdade e justiça por parte do Estado, nesse debate também se inseriu um
novo movimento social relevante. O Levante Popular da Juventude, forma-
do por uma nova geração de ativistas que abraçaram a causa das violações
do regime repressivo, surgiu no Rio Grande do Sul, em 2006. Inicialmente
como um movimento estadual, iniciou seu processo de nacionalização em
2011. Em março de 2012, objetivando pressionar p ela instalação da CNV
(já prevista em lei), o grupo Levante Popular da Juventude iniciou uma sé-
rie de “escrachos” pelo país. Inspirados por experiências de vizinhos como
o Chile, Uruguai e Argentina, esses jovens buscaram expor publicamente
agentes conhecidos como violadores de direitos humanos durante o pe-
ríodo ditatorial. Apesar de o grupo ter como objetivo principal denunciar
os limites das políticas adotadas, por conta do óbice jurisdicional imposto
pela vigência da lei de anistia, as pressões efetuadas pelo LPJ foram incisivas
para a instituição em denitivo da CNV (Silva, 2015, 472-3).
Amanda Cataldo dos Santos • 73
experiência internacional. Em seguida, serão consideradas as ativi-
dades desenvolvidas no decorrer de seus trabalhos, assim como o
relacionamento com a sociedade civil, os órgãos e as instituições pú-
blicas, em especial, com as Forças Armadas e os agentes do regime
repressivo. Em conclusão, será apresentado um balanço das prin-
cipais atividades realizadas, em termos de verdade e de justiça aos
vitimados, ressaltando os desaparecidos localizados, os pedidos de
reticação de óbito e as investigações sobre casos emblemáticos.
Ao mesmo tempo, será dedicada uma seção às principais
conclusões e recomendações do relatório nal. Tendo em vista tais
considerações, vericar-se-á como a CNV apresenta um arcabouço
teórico, com base em standards normativos internacionais, para a
fundamentação de medidas jurisdicionais em face dos agentes do
regime ditatorial.
Ademais, o presente capítulo evidenciará as reações e a re-
cepção de atores proeminentes no debate sobre justiça de transição,
nacionais e internacionais, em relação ao relatório nal da CNV. Por
m, com base na sentença proferida pela Corte IDH, será vericado
em que medida o relatório nal da CNV fornece aportes ao Sistema
Interamericano no caso Vladimir Herzog.
3.1. Uma análise normativa sob o prisma da lei nº 12.528/11
Os números relativos à quantidade total de comissões da
verdade já instituídas pelo mundo oscilam consideravelmente, con-
forme a classicação adotada pelo estudo. Priscilla Hayner (2011, p.
xi-ii) contabilizou um total de 40 comissões criadas desde 1974 até
2009. Mark Freeman (2006, p. 317), por sua vez, considerou 34 co-
missões em período semelhante ao aduzido por Hayner. Por m, em
um estudo mais recente realizado pelo Transitional Justice Research
Collaborative, citado por Kim e Sikkink (2013, p. 274), dentre 1979 e
2009, vericou-se a existência de 54 comissões da verdade, das quais
18 foram instituídas na África, 17 nas Américas, 10 na Ásia, 5 na Eu-
ropa e 4 no Oriente Médio e no Norte da África. Por meio de p arâ-
metros semelhantes aos utilizados nesse estudo, Sikkink e Marchesi
(2015) situam a CNV como a 43ª comissão da verdade constituída
no mundo.
Portanto, a partir de tais divergências numéricas, infere-se
que a denição de comissões da verdade não é fechada, nem consen-
74 • Capítulo 3
sual. Nesse sentido, deve-se ter em mente que será apresentada uma
denição replicada frequentemente pela expertise internacional.
De acordo com os parâmetros adotados por Mark Freeman
(2006, p. 18), as comissões da verdade são comissões de inquérito ad
hoc, autônomas, centradas nas vítimas, instituídas e autorizadas pelo
Estado, com os objetivos primordiais de:
a) Investigar e reportar as principais causas e consequências
de padrões massivos e relativamente recentes de grave vio-
lência ou repressão, que ocorreram no Estado durante perío-
dos de repressão ou conito;
b) Realizar recomendações com vistas à reparação e à pre-
venção futura.
Sob esse viés, a CNV encaixa-se na denição supracitada,
uma vez que se trata de uma comissão de inquérito ad hoc prevista,
inicialmente, para funcionar por 2 anos, autônoma (criada no âmbi-
to da Casa Civil da Presidência, à qual teria vinculação apenas admi-
nistrativa), com foco nas vítimas, instituída e autorizada pelo Estado
por meio da lei nº 12.528/11, contendo, dentre seus objetivos legais:
I - esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves vio-
lações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o;
II - promover o esclarecimento circunstanciado dos cas os de
torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de
cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior;
III - identicar e tornar públicos as estruturas, os lo-
cais, as instituições e as circunstâncias relaciona-
dos à prática de violações de direitos humanos
mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais
ramicações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;
IV - encaminhar aos órgãos públicos competen-
tes toda e qualquer informação obtida que possa au-
xiliar na lo calização e identicação de corpos e res-
tos mortais de desaparecidos políticos, nos termos
V - colaborar com todas as instâncias do poder pú-
blico para apuração de violação de direitos humanos;
VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas
para prevenir v iolação de direitos humanos, assegurar sua
não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e

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