Um novo capítulo na justiça transicional no Brasil

AutorAmanda Cataldo
Páginas43-71
Amanda Cataldo dos Santos • 43
2. Um novo capítulo na justiça transicional no Brasil
Nos primeiros anos de democracia nascente no Brasil pou-
cas foram as iniciativas estatais direcionadas ao tratamento do lega-
do de graves violações de direitos humanos perp etradas durante a
ditadura militar. Apesar da promulgação da Constituição Federal de
1988 (a chamada “Constituição Cidadã”), a busca por verdade e jus-
tiça1 restava obstaculizada em âmbito estatal, principalmente, pela
interpretação extensiva do dispositivo de anistia aos agentes estatais2
e pela constante presença na arena política de atores remanescentes
ou herdeiros do regime antecessor3.
1
Nesse sentido, importa ressaltar os incisos do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988 (que versa sobre os direitos e deveres individuais e coleti-
vos), nos quais constam o princípio garantidor de acesso à justiça (inciso
XXXV) e a garantia de acesso a informações dos órgãos públicos (inciso
XXXIII). Apesar de dispositivos constitucionais progressistas e da inclusão
de direitos e garantias fundamentais, o Estado brasileiro não garantiu às
vítimas, de imediato, acesso a mecanismos efetivos de justiça e verdade.
2
Em linhas gerais, a interpretação extensiva da lei de anistia se dá com base
no entendimento de que as graves violações de direitos humanos cometidas
pelos agentes do período ditatorial seriam “crimes políticos ou conexos a
eles”. De acordo com a lei nº 6.683 de 1979: “Art. 1º É concedida anistia a
todos quantos, no per íodo compreendido entre 02 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes,
crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos
servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Mi-
litares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento
em Atos Institucionais e Complementares. § 1º - Consideram-se conexos,
para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com
crimes políticos ou praticados por motivação política” (grifo nosso).
3
Com o objetivo de propiciar uma imagem, tanto em âmbito interno quan-
to internacional, de legalidade ao regime repressivo, além de outras medi-
das legais, a ditadura militar adotou o sistema de bipartidarismo p or meio
do Ato Institucional nº 2, regulamentado pelo Ato Complementar nº 4. No
início de 1966, os dois partidos que gurariam na arena política nos próxi-
mos anos foram criados: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a
44 • Capítulo 2
Uma década após a transição democrática, os primeiros pas-
sos do Estado no campo conhecido internacionalmente como “jus-
tiça de transição” foram estruturados no eixo da reparação moral e
econômica aos vitimados. Além de medidas de reconhecimento do
sofrimento das vítimas, como memoriais, publicações, tratamentos
médicos (Teles et al., 2015, p.24), foram criadas a Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, CEMDP, (1995) e a Comis-
são de Anistia (2001). Apesar de o Estado ter constituído um amplo
programa de reparação às vítimas diretas e indiretas do regime, um
modelo internacionalmente reconhecido; a lei de anistia promulga-
da durante o regime repressivo ainda representava um óbice à obten-
ção do direito à verdade e à luta contra a impunidade.
A primeira iniciativa citada, a CEMDP, foi criada por meio
da lei nº 9.140, de de zembro de 1995, sancionada pelo Presidente
Fernando Henrique Cardoso, como resultado da pressão continu-
ada dos familiares d as vítimas do regime militar. A lei concedia re-
parações nanceiras aos familiares dos reconhecidamente mortos
e desaparecidos por conta das ações estatais; entretanto, não abria
quaisquer possibilidades de responsabilização ou provia informa-
ções sobre o paradeiro dos desaparecidos (Teles et al., 2015, p.29).
Em linhas gerais, declarava que 136 brasileiros desaparecidos p olí-
ticos seriam considerados mortos e, assim, suas famílias poderi am
solicitar a lavratura de atestados de óbito. Portanto, a despeito de
congurar o primeiro ato estatal ocial de reconhecimento de sua
responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos perpetrados, a lei
não abarcava “a restituição da verdade jurídica,” a recuperação dos
restos mortais nem a punição dos responsáveis (Teles, 2010, p.253).
Um marco sig nicativo da atuação da CEMDP foi a elabora-
ção do livro Direito à memória e à verdade: Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos. Essa obra resultou de um relatório de 2007,
no qual eram apresentadas narrativas sobre 221 mortes e desapare-
Aliança Renovadora Nacional (Arena). Em termos gerais, o MDB assumiu
o papel de partido de oposição, e a Arena tornou-se o partido de apoio ao
regime repressivo. Com a volta do multipartidarismo, em dezembro de
1979, a antiga ARENA assumiu a legenda do Partido Democrático Social
(PDS). Com o passar dos anos, dissidências deram origem ao Partido Fren-
te Liberal (PFL), atual DEM; ao Partido Progressista Renovador (PPR), que
se tornou Partido Progressista Brasileiro (PPB), e hoje denomina-se Parti-
do Progressista (PP).

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