O Direito internacional à verdade, as comissões da verdade e a justiça de transição

AutorAmanda Cataldo
Páginas11-42
Amanda Cataldo dos Santos • 11
1. O Direito internacional à verdade, as
comissões da verdade e a justiça de transição
Neste primeiro capítulo, inicialmente, será realizada uma
breve apresentação acerca da emergência do “direito à verdade” so-
bre as graves violações de direitos humanos como uma norma inter-
nacional. A luta pela “verdade, inicialmente uma bandeira levantada
pelos familiares dos desaparecidos políticos dos regimes ditatoriais
latino-americanos, tornou-se, em período recente, um direito reco-
nhecido em um tratado internacional no âmbito das Nações Unidas
sobre a temática do desaparecimento forçado. Não obstante, o “direi-
to à verdade” passou também a ser relacionado às demais violações
de direitos humanos e objeto de so law do Sistema Internacional de
Proteção dos Direitos Humanos. Por conseguinte, o desenvolvimen-
to de tal norma emergente no âmbito das Nações Unidas ofereceu
um fundamento jurídico à instituição de comissões da verdade.
Conforme será aduzido, as comissões da verdade, inicial-
mente instituídas nos contextos imediatos à transição de regimes
repressivos, como uma “segunda melhor opção” diante da impossi-
bilidade prática ou da indes ejabilidade do recurso às cortes jurisdi-
cionais, tinham como fundamento justicatório razõ es de natureza
política ou moral. Com o passar do tempo, tais mecanismos foram
difundidos para diferentes realidades regionais e políticas, ao pas-
so que se tornaram justicados sob o prisma jurídico por meio da
emergência do direito internacional à verdade. A partir de tais consi-
derações, serão apresentados três diferentes estágios ou fases de ins-
tituições das comissões da verdade, até a última na qual a comissão
brasileira emerge.
Em um último ponto, serão apresentados os argumentos
de Onur Bakiner (2016) sobre como as comissões da verdade são
permeadas por um conjunto de relações de poder. As comissões da
verdade são mecanismos relativamente independentes dos governos
e atravessadas por relações de poder que se desenvolvem em vários
níveis, dentro e fora de sua circunscrição. Sob esse viés, a verdade a
ser emanada por seus t rabalhos não pode ser tida como um mero
12 • Capítulo 1
produto à serviço do poder político estatal. As comissões da verdade
podem assumir posicionamentos destacados do discurso ocial do
governo e, dependendo da interação de forças entre os agentes polí-
ticos, sociais e burocratas, tornarem-se efetivos fóruns de prestação
de contas à sociedade; além de propulsores no processo de recon-
guração dos eixos transicionais de um país.
1.1. A emergência do direito internacional à verdade
Na segunda metade do século XX, como um “efeito do-
minó”, regimes repressivos foram instaurados no Cone Sul: Brasil
(1964), Uruguai (1973) Chile (1973) e Argentina (1976). Nesses pa-
íses, parcelas da população civil foram exterminadas com fulcro em
doutrinas elaboradas internacionalmente, que forneciam discursos
justicantes ao terrorismo de Estado.
Arquitetada em um primeiro momento nos Estados Unidos,
a Doutrina de Segurança Nacional difundiu a esfera de conito da
Guerra Fria para a América Latina, armando o papel estratégico
de países periféricos na luta ideológica contra o comunismo e a in-
uência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Já
a Doutrina da Guerra Revolucionária, difundida p ela Escola Supe-
rior de Guerra f rancesa, ainda na década de 1950, havia expandido
seu alcance por meio do intercâmbio de militares latino-americanos,
inclusive brasileiros, à Europa. Essa última doutrina acabou por for-
necer alicerces teóricos para as práticas de torturas e de mortes de
guerrilheiros durante o regime ditatorial1.
1
De acordo com Marcelo Godoy (2014, p.72) “A guerra revolucionária era
uma guerra interna e não entre países. Seu campo de ação era a ‘mente hu-
mana’, a conquista do pensamento do homem para a derrubada do governo.
Ela s eria ‘total’ porque envolveria todos os setores da atividade humana.
Seu alcance seri a global e ela ser ia ‘permanente’ e desencadeada pelos co-
munistas – o caráter permanente da guerra mostraria como a política se
havia transformado em guer ra. Além do conceito francês, o Exército bra-
sileiro adotou medidas semelhantes às usadas na Argélia. Exemplo disso
foi pôr sob suas ordens a missão de combater a subversão, centralizando o
comando responsável pela tarefa e criando uma unidade especializada em
informações e operações para destruir a organização política e logística do
inimigo. Aqui essa unidade chamava-se DOI”.
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Aqueles que resistiam e se opunham ao sistema ditatorial
eram identicados como “terroristas” e subversivos, já que coloca-
riam em risco a ordem e a segurança da nação. Como vidas descar-
táveis diante dos imperativos da “segurança nacional” negava-se aos
mesmos o status de cid adãos e de vítimas; eram combatentes “san-
guinários”, partes em uma guerra interna travada contra o Estado.
Em um contexto de operações de inteligência e monitora-
mento sobre os considerados suspeitos de “terrorismo” (com fre-
quência forçados a viver clandestinamente, afastando-se do núcleo
afetivo e das demais atividades sociais e prossionais cotidianas), os
agentes estatais passaram a lançar mão do seu “poder des aparece-
dor”2. A prática do desaparecimento forçado, assim, foi implementa-
da como uma política de Estado direcionada aos considerados como
opositores políticos das ditaduras instauradas no Cone Sul.
O primeiro registro de reivindicação por um “direito à ver-
dade”, em âmbito latino-americano, relaciona-se à luta travada p or
organizações formadas por familiares de vítimas de desaparecimen-
to forçado durante as ditaduras militares instauradas na região. No
contexto da repressão e da violência perpetradas p elas ditaduras
militares no Cone Sul, principalmente nos anos de 1970, familiares
dos desaparecidos e ativistas políticos basearam suas demandas por
informações sobre o destino e o paradeiro dos militantes por meio
da bandeira da “busca pela verdade”.
Ao amparar suas lutas em um vocábulo considerado “neu-
tro” em termos políticos, os familiares das vítimas e ativistas pas-
saram a protestar contra as negativas estatais em relação às graves
violações de direitos humanos perpet radas por seus agentes, sem
que realizassem abertamente críticas aos regimes ditatoriais ainda
no poder (Naali, 2016, p.3)3.
2
Nas palavras de Pilar Calveiro, autora e sobrevivente da ditadura argen-
tina, o “poder desaparecedor” consiste na utilização do desaparecimento
forçado como uma política de Estado repressiva, como ocorreu no caso
argentino e ainda se perpetua em democracias atuais (Calveiro, 2013).
3
Nesse sentido, destaca-se o primeiro pronunciamento público da organi-
zação Madres de Plaza de Mayo, formado por mães de desaparecidos po-
líticos durante a ditadura militar da Argentina (197683). Em seu discurso
de 1977, intitulado Por una Navidad en paz. Sólo pedimos la verdad, as
ativistas utilizaram-se do termo “verdade” de forma a se opor e resistir à
clandestinidade dos crimes do regime repressivo (Naali, 2016, p.3). No

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