Os conceitos fundamentais da crítica marxista do direito de Evgeni Pachukanis.

Autorde Farias, João Guilherme A.

AKAMINE JR. et al. Léxico Pachukaniano. 1. ed. MarÃÂlia-SP: Lutas Anticapital, 2020. 272 p. ISBN 978-65-86620-35-1.

Sobre o livro e seus objetivos

O Léxico pachukaniano resulta de um trabalho coletivo que reúne análises sobre as principais categorias que compõem a crÃÂtica marxista do direito de Evgeni Pachukanis (1891-1937), além de outros dois textos inéditos de autoria do jurista bolchevique. O Léxico... é uma obra estritamente teórica produzida com dois objetivos principais: servir de introdução ao pensamento de Pachukanis, bem como permitir a consulta direta aos principais temas trabalhados por ele. Para uma compreensão adequada do Léxico..., no entanto, penso ser imprescindÃÂvel que seja feita a sua leitura em cotejo com a obra máxima de Pachukanis, qual seja, A teoria geral do direito e o marxismo (Ed. Sundermann, 2017, 338 p).

Os quatorze verbetes que integram a obra foram distribuÃÂdos, em proporções distintas, entre sete autores e uma autora, que produziram textos inéditos. Os nomes que assinam os artigos são bastante conhecidos na área da crÃÂtica marxista do direito e acumulam em seus currÃÂculos vasta produção acadêmica daquilo que hoje há de mais destacado e relevante nesse campo de estudos. O traço comum entre todos os nomes, pelo que revela o trabalho publicado, é a convergência na defesa das teses pachukanianas como ponto de partida irrevogável de uma crÃÂtica do direito que se proponha marxista.

O Léxico... não é uma simplificação rasteira ou um manual no qual os(as) leitores(as) encontrarão meios procedimentais de "como ler" ou "como entender" a teoria pachukaniana. Ao contrário, o Léxico... é um trabalho teórico que busca proporcionar um entendimento ao mesmo tempo introdutório e sistemático da obra do jurista soviético, que em si mesma pode oferecer elevado grau de dificuldade, por exigir, dentre outras condições, relativa compreensão da teoria marxista e também da dogmática jurÃÂdica, campos (marxismo e direito) que muito raramente se conectam na forma como se encontram dispostos os currÃÂculos das ciências humanas e sociais no Brasil.

Como os quatorze verbetes estão profundamente relacionados, a sua disposição em ordem alfabética não acarreta qualquer prejuÃÂzo àobra e aos dois objetivos àluz dos quais ela foi produzida. Ao contrário, mostra-se adequado o encerramento do livro com o verbete sujeito de direito, se considerarmos o método marxiano da concreção, como veremos mais adiante. O Prefácio é assinado por Márcio Bilharinho Naves e Celso Naoto Kashiura Jr., uma parceria intelectual consolidada e muito profÃÂcua entre dois dos principais nomes da crÃÂtica marxista do direito.

Os conceitos fundamentais da crÃÂtica pachukaniana

O verbete Contrato, que abre o livro, foi escrito por Pablo Biondi, que constrói sua exposição a partir de três perspectivas. A primeira, que entendo ser um aprofundamento das diretrizes metodológicas de Pachukanis, é dedicada àdemonstração da centralidade da categoria do "contrato" para a filosofia moderna e contemporânea, passando por diferentes correntes e pensadores, concluindo, após esse percurso, que "o resultado é sempre o mesmo: o apelo ao contrato como expressão máxima da sociabilidade e o mascaramento das classes sociais por meio de uma igualdade abstraÃÂa" (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 19). A segunda perspectiva explora o tema da "forma jurÃÂdica embrionária" nas formações pré-capitalistas, compreendida por Biondi (Ibid.: p. 20) como "uma existência precária e limitada do elemento jurÃÂdico, fracamente diferenciada dos costumes e da religião". A terceira, que penso ser de relevância extraordinária, é dedicada às consequências polÃÂticas que o "contrato" acaba por gerar na sociedade capitalista. Esse caminho permite ao autor concluir que o contrato de trabalho, por um lado, "viabiliza o exercÃÂcio do poder do capital sobre o trabalho e, ao mesmo tempo, dissimula sua real extensão"; por outro, "traz consigo um papel de neutralização polÃÂtica do proletariado ao submeter a luta de classes aos contornos gerais da forma jurÃÂdica" (Ibid.: pp. 23-24).

A exposição de Biondi, que articula um referencial filosófico e dogmático em sua análise, confere clareza àfunção ideológica desempenhada pelo contrato ao abordar os fundamentos e as implicações polÃÂticas dessa categoria para o processo real de exploração capitalista, o que não é pouco. Ao ratificar a adequação do seu uso por Pachukanis, fortemente influenciado pela crÃÂtica de Bernard Edelman (2016: 191 p.), Biondi reforça a necessidade de que tal categoria seja concebida àluz das determinações históricas e de classe, rompendo assim com um ideal de neutralidade que decorre da perspectiva tradicional e supra-histórica do contrato como simples instrumento de expressão da vontade humana.

O verbete Delito é assinado por Gabriel Furquim, que, no essencial, expõe os principais fundamentos da relação entre direito penal, equivalência mercantil e quantificação da pena, bem como o papel do sistema punitivo na reprodução das relações capitalistas de produção. Um dos méritos de Furquim está, precisamente, no reforço que ele faz da tese pachukaniana de que a "natureza de classe não depende do domÃÂnio subjetivo da burguesia, mas das próprias formas sociais engendradas pela valorização do valor" (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 39), o que nos permite encarar o direito penal para além de uma concepção instrumental, que tende a reduzir seu papel na luta de classes ao conteúdo normativo.

Munido de um referencial bastante rigoroso e convergente em torno da leitura da obra pachukaniana, Furquim também aponta para o que seriam "pequenas vacilações" de Pachukanis, referindo-se àsua concepção "idealizada das relações sociais reais" (Ibid.: p. 46) sobre a economia soviética planificada, quadro no qual está inserida a sua proposta de adoção de medidas médico-pedagógicas em substituição às sanções de natureza penal. O didatismo de sua análise, somado aos referenciais que subsidiam sua leitura, sem sombra de dúvidas, abre um leque de possibilidades para o desenvolvimento do tema.

A perspectiva adotada por Furquim mostra-se bastante adequada e coerente com a tradição marxista e pachukaniana. Em sua exposição, verificamos que o valor, como relação social entre os produtores de mercadorias, desenvolve-se por completo apenas no capitalismo, mais especificamente no momento em que se dá a subordinação real do trabalho ao capital e, por conseguinte, quando o trabalho humano é reduzido a trabalho abstrato.

Nesse sentido, Marx (2013: p. 116) afirma que a grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho nele contida e apurada por um padrão determinado de tempo. Ao explicar como é constituÃÂda a grandeza do valor das mercadorias e a razão pela qual o seu conteúdo se expressa precisamente pela forma mercantil, Marx (2013: p. 132) revela o princÃÂpio da equivalência entre as distintas mercadorias: "a forma de equivalente de uma mercadoria é a forma de sua permutabilidade direta com outra mercadoria".

Alinhado a isso, Pachukanis nos demonstra, como expõe Furquim, que a forma jurÃÂdica do direito penal, com seus conceitos abstratos, está determinada pela forma mercantil do princÃÂpio da troca de equivalentes, momento em que se generaliza a pena tal como a conhecemos hoje, isto é, como a privação de um quantum de tempo determinado de liberdade do acusado (PACHUKANIS, 2017: p. 215).

O verbete Estado, assinado por Carlo Di Mascio, possui o mérito de articular, de forma muito adequada, os fundamentos em torno da cisão que se expressa politicamente entre o Estado, com seu caráter público de representante do interesse geral, e a sociedade civil, com seu caráter privado, cuja condição de existência é a generalização da troca de mercadorias. Do mesmo modo, é preciso ressaltar a pertinência de sua exposição no que toca àfuncionalidade do Estado na reprodução da "forma da relação jurÃÂdica entre sujeitos portadores de interesses privados autônomos", ao mesmo tempo que oculta "as relações de domÃÂnio de classe" (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 61).

Adstrito àtese pachukaniana da equivalência mercantil, Di Mascio explica o mecanismo pelo qual o Estado se apresenta como um "terceiro" indiferente aos sujeitos que se enfrentam no circuito de troca de mercadorias, e não como um local de domÃÂnio direto de uma classe especÃÂfica. A importância do verbete reside na crÃÂtica ànoção redutora do Estado como mero instrumento de classe, de um lado, e na demonstração do seu papel estruturante na exploração capitalista, de outro. Apenas acrescentaria aqui, como um...

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