A conceituação de dados pessoais dispóníveis publicamente

AutorGiovanna Milanez Tavares
Páginas7-82
A CONCEITUAÇÃO DE DADOS PESSOAIS
DISPONÍVEIS PUBLICAMENTE
I. A FORMAÇÃO DO DIREITO À PROTEÇÃO DE DADOS
PESSOAIS NO BRASIL
I.1. Fundamentos Teóricos e Históricos
O modelo atual da tutela jurídica dos dados pessoais no sistema
normativo brasileiro está intrinsicamente ligado ao marco regulató-
rio europeu, já que foi nele inspirado. Exatamente por isso, hoje, a
disciplina da proteção de dados pessoais alcançou certo grau de
harmonização sob a perspectiva internacional,2 a partir da previsão
de institutos, ferramentas, conceitos e obrigações semelhantes na
maioria das legislações de proteção de dados existentes, sejam elas
nacionais, sejam supranacionais (no caso da União Europeia).3
7
2 DONEDA, Danilo. Panorama Histórico da Proteção de Dados Pessoais.
In: DONEDA, Danilo (coord.); SARLET, Ingo Wolfgang (coord.); MEN-
DES, Laura Schertel (coord.); RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz
(coord.) BIONI, Bruno Ricardo (coord.). Tratado de Proteção de Dados
Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. pp. 3-20.
3 O Professor Graham Greenleaf contabilizou a existência de 142 países
com legislações de proteção de dados até o final de 2019, independente de
estes serem ou não membros da Organização das Nações Unidas (ONU) ou
de as legislações aplicarem-se ao setor público ou privado isoladamente ou a
ambos concomitantemente. Ademais, a pesquisa concluiu que a década de
2010 a 2019 representou o maior avanço normativo já visto, com a promul-
gação de 62 novas legislações ao redor do mundo, quantidade numericamen-
te maior que as duas décadas anteriores juntas. Assim sendo, se a tendência
atual de promulgação de novas leis de proteção de dados continuar em ritmo
Tal fenômeno de convergência e padronização, historicamente,
confunde-se com a própria origem das leis gerais de proteção de
dados pessoais modernas.4 A Organização para Cooperação e De-
senvolvimento Socioeconômico (OCDE) e o Conselho da Europa
(CoE) pautaram a produção normativa que inspirou as leis de pro-
teção de dados ao redor do mundo a partir do início da década de
1980, resultando em uma dinâmica de influências mútuas entre os
diversos sistemas jurídicos, principalmente na Europa.5
Sob a perspectiva internacional, há que se destacar, inicialmen-
te, o primeiro marco histórico relacionado ao direito à privacidade,
qual seja o memorável artigo “The right to privacy”, de Samuel
Warren e Louis Brandeis, publicado em 1890 na Harvard Law Re-
view,6 no qual os autores consolidaram a jurisprudência à época
existente sobre a temática para sinalizar o que chamaram de right
8
semelhante, até o final da década de 2020, haverá mais de 200 países
(incluindo territórios autônomos) com legislações nacionais próprias.
GREENLEAF, Graham; COTTIER, Bertil. 2020 Ends a Decade of 62 New
Data Privacy Laws. Privacy Laws & Business International Report, v. 163,
pp. 24-26, jan. 2020.
4 BIONI, Bruno R.; MENDES, Laura Schertel. Regulamento Europeu de
Proteção de Dados Pessoais e a Lei Geral brasileira de Proteção de Dados:
mapeando convergências na direção de um nível de equivalência. In: TEPE-
DINO, Gustavo (coord.); FRAZÃO, Ana (coord.); DONATO, Milena
(coord.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no
Direito Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. pp. 791-814.
5 A própria origem da definição do conceito de dado pessoal como está
hoje assentado na maior parte das leis gerais de proteção de dados, a exemplo
da LGPD, remonta os esforços desenvolvidos em conjunto pela OCDE, com
a publicação das Guidelines Governing the Protection of Privacy and Trans-
border Flows of Personal Data em 1980, e pelo Conselho da Europa, com a
aprovação do Explanatory Report on the Convention for the Protection of
Individual with Regard to Automatic Processing of Personal Data em 1981,
demonstrando a notória continuidade dos elementos normativos relaciona-
dos à proteção de dados ao longo do tempo. CORDEIRO, A. Barreto Mene-
zes. Dados pessoais: conceito, extensão e limites. Revista de Direito Civil,
Lisboa, a. 3, n. 2, pp. 297-321. 2018.
6 WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The right to privacy. Harvard
Law Review, v. 4, n. 5, 1890, p. 193-220.
to be let alone, ou seja, o direito de ser deixado só (ou em paz), que
pressupunha tradicionalmente uma dicotomia entre as esferas pú-
blica e privada.7 Somado a isso, o artigo já sinalizava uma preocupa-
ção que se tornaria cada vez mais concreta e expressiva ao longo
dos anos seguintes: a constatação de um forte vínculo entre o pro-
gresso tecnológico e a tutela da privacidade.8
Foi exatamente em virtude dessa preocupação, incrementada
pelo crescimento exponencial dos bancos de dados e processos
automatizados de tratamento de dados pessoais à época nos Esta-
dos Unidos que o Congresso americano, em 1960, deixou de apro-
var um projeto de lei cujo objetivo principal seria a construção de
uma base de dados centralizada no país,9 o National Data Center,
9
7 Segundo Samuel Warren e Louis Brandeis, as transformações sociais,
políticas e econômicas, bem como o surgimento de novas invenções, como a
fotografia, intensificaram as violações da vida privada dos indivíduos. O right
to privacy, deduzido pelos autores como um princípio geral na common law a
partir da análise jurisprudencial inglesa e norte-americana da época, garanti-
ria ao indivíduo uma proteção contra intromissões não desejadas em sua vida
privada, tutelando juridicamente seus sentimentos, pensamentos, emoções,
imagem, dados pessoais e até o seu nome. ZANINI, Leonardo Estevam de
Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right to privacy nos Estados
Unidos. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 64, fev. 2015.
8 DONEDA, Op. cit., 2021, p. 6.
9 A dinâmica que inspirou os debates para a construção dos primeiros
marcos regulatórios relacionados à proteção de dados nos Estados Unidos e
em alguns países da Europa também ocorreu no Brasil de forma semelhante,
apesar de não ter influenciado de forma significativa a doutrina e jurispru-
dência brasileiras no que diz respeito ao direito à privacidade. Isso porque,
enquanto, ainda na década de 70, discutia-se sobre a elaboração do National
Data Center (cadastro único dos cidadãos) nos Estados Unidos, foi apresen-
tado, no Brasil, o projeto de lei do RENAPE – Registro Nacional de Pessoas
Naturais, que criaria uma base de dados nacional que integrasse o Registro
Civil de Pessoas Naturais e a Identificação Civil. Contudo, ao contrário do
que ocorreu nos Estados Unidos, em que a pretensão de criação de um banco
de dados único e nacional dos cidadãos pelo Estado culminou em debates
resolutivos acerca do direito à privacidade e à proteção de dados, no Brasil, o
projeto acabou sendo arquivado anos depois sem deixar qualquer rastro
significante na doutrina e jurisprudência brasileiras. DONEDA, Danilo. A

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