A concepção democrática de direitos humanos

AutorTomás L'alík
CargoComenius University
Páginas5-39
Rev. direitos fundam. democ., v. 28, n. 3, p. 5-39, set./dez. 2023.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd v28i32725
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
A CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DE DIREITOS HUMANOS1
DEMOCRATIC CONCEPTION OF HUMAN RIGHTS
Tomáš Ľalík
Professor de Direito Constitucional na Universidade Comenius, de
Bratislava, na Eslováquia. Consultor jurídico do Tribunal
Constitucional Eslovaco e Juiz ad hoc representando a Eslováquia no
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (2016-2022).
RESUMO
O artigo é uma crítica à concepção liberal de direitos, que enfatiza a
autonomia individual, o livre arbítrio e um espaço público neutro. A
consequência é a erosão da democracia, da comunidade e a perda
dos laços sociais entre as pessoas. Em contrapartida, o artigo traça
características da concepção democrática de direitos, o que refuta
algumas teses defendidas pela concepção liberal. A concepção
democrática está orientada para a criação do bem comum no projeto
de autogoverno. Além das considerações teóricas, o artigo também
contém dois exemplos práticos que apontam a inadequação da
concepção liberal de direitos.
Palavras-chave: bem comum, liberalismo, republicanismo, direitos
ABSTRACT
The article is a critique of the liberal conception of rights, which
emphasizes individual autonomy, free will and a neutral public space.
The consequence is the erosion of democracy, community, and the
loss of social bonds between people. As a contrast, the article outlines
feature of the democratic conception of rights, which refutes some
theses held by the liberal conception. The democratic conception is
oriented towards the creation of the common good in the project of
self-government. In addition to theoretical considerations, the paper
1 Artigo original traduzido para o português brasileiro por Elcio Domingues da Silva e revisão final realizada
por Marcos Augusto Maliska. A Equipe Editorial da Revista Direitos Fundamentais e Democracia agradece ao
autor pela permissão da tradução do texto.
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Rev. direitos fundam. democ., v. 28, n. 3, p. 5-39, set./dez. 2023.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd v28i32725
TOMÁŠ ĽALÍK
also contains two practical examples that pinpoint the inadequacy of
the liberal conception of rights.
Key words: common good, liberalism, republicanism, rights
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O atual modelo de direitos humanos baseado na ideologia liberal-progressista
parece ser inadequado, porque coloca demasiada ênfase na autonomia do indivíduo,
promovendo fortemente o individualismo. A sua consequência não é apenas a erosão da
democracia, mas, em última análise, também a perda de laços sociais e a subversão da
sociedade (o Estado). Neste trabalho, pretendo apresentar as principais características de
um modelo concorrente de direitos humanos – a concepção republicana (democrática) que
difere da concepção liberal clássica em muitos aspectos.
Na primeira parte do artigo destacarei a visão liberal de pessoa humana, que será
alvo de críticas nas próximas partes. Ao mesmo tempo, delinearei características básicas
da concepção republicana de direitos acima mencionada. No entanto, é impossível oferecer
soluções rápidas e concretas para conflitos individuais de direitos e liberdades, por isso no
artigo discuto apenas uma ideia geral de direitos que precisa de ser desenvolvida não
apenas pelas formas (como implementar o conceito na prática) ou instituições, incluindo as
relações entre elas (qual instituição é a mais qualificada para formular esses valores), mas
também em termos de substância (quais valores uma sociedade específica protegerá).
2. O LIBERALISMO E A IDEIA DE PESSOA HUMANA
De Kant, passando por Rawls e Dworkin, até outros autores do pensamento liberal,
a concepção liberal de direitos se baseia na premissa de que o direito é anterior ao bem. O
ponto de partida é que o bem é um produto do direito que o constitui.2 Somente em um
universo sem finalidade (telos) o sujeito pode ser entendido como separado e primordial
em relação aos fins e propósitos. Se a natureza ou o cosmos não dão propósito ou
significado ao mundo, esta tarefa pertence ao ser humano. Portanto, para Kant, a lei moral
não é mais um produto da razão teórica (pura), mas esta lei é criada pela razão prática – a
vontade. A vantagem da razão prática é a capacidade de criar conceitos práticos
diretamente com base na vontade, sem a necessidade de cognição.
2 STACHOŇ, M.: Kant a sociálno-filozofický rozmer idy dobra. In: Daniela Slančáková et al. (eds.): 3.
študentská vedecká konferencia. Zborník príspevkov. Prešov: Prešovská univerzita, 2008, p. 138.
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A
CONCEPÇÃO DEMOCRÁTICA DE DIREITOS HUMANOS
Na teoria liberal, o direito precede o bem em dois sentidos: os direitos individuais
não podem ser sacrificados em favor do bem comum e os princípios de justiça não podem
basear-se numa certa concepção de vida boa. Os conceitos liberais baseiam-se no fato de
que o conceito de bem é diverso, enquanto o indivíduo é dotado de dignidade, liberdade e
igualdade, o que leva ao fato de que (I) o indivíduo determina por si mesmo o conceito de
bem e (II) este conceito não permite fazer distinções entre modos de vida que os indivíduos
levam porque a esfera pública é neutra.3 Por uma questão de clareza, desdobrarei os
argumentos de maneira mais detalhada a seguir.
Na concepção liberal, o indivíduo é livre em dois aspectos. Por um lado, ele é livre
porque escolhe o conceito de vida boa ou vida moral. Kant enfatiza este aspecto da
autonomia da vontade, como o princípio mais elevado da moralidade, que é uma lei em si
mesma. É o único princípio da moralidade e baseia-se na independência de qualquer
substância – isto é, livre do objeto.4 A autonomia da vontade resulta da boa vontade, que
pode ser assim descrita: “Não há nada que seja possível pensar em qualquer lugar do
mundo, ou mesmo qualquer coisa fora dele, que possa ser considerado bom sem limitação,
exceto apenas uma boa vontade."5 A sua bondade ilimitada reside no querer, ou seja, em
escolher em si o que faz de uma pessoa, uma pessoa.6 Tal conceito Kant desenvolveu a
partir de sua metafísica e não de pesquisas empíricas – ele partiu do reino numenal (reino
dos fins), onde o indivíduo era um sujeito de escolha livre de quaisquer leis determinísticas
da física.7
Outra característica importante da teoria do liberalismo, especialmente para Kant e
seus seguidores, é a ideia de separar as pessoas dos desejos e fins. Uma pessoa é
independente (separada) de seus desejos e fins. O sujeito existe em si mesmo e,
consequentemente, a pessoa é anterior em relação aos seus fins. Por outro lado, os fins
não são determinantes (primários) para nós.
Além disso, de acordo com a visão liberal, uma pessoa está livre de quaisquer
limitações sociais e jurídicas que não tenha escolhido. O indivíduo escolhe, de igual forma,
a sua identidade (quem sou eu) e tal identidade é externamente incondicionada. Livre de
3 F. Fukuyama entende esta justificação do liberalismo como a sua base moral (autonomia individual na
tomada de decisões) e justificação pragmática (redução do risco de agitação e da possibilidade de uma
população diversa viver junta); FUKUYAMA, F.: Liberalism and its Discontents. London: Profile Books, 2022
p. 5.
4 BELAS, É.: Sociálne dôsledky Kantovej etiky. Filozófia, v. 60, n. 4, 2005, p. 256.
5 Para uma discussão, veja WOOD, A.: The Good Will. Philosophical Topics v. 31, 2003, p. 457-484
6 STACHO, M.: Od Kantovej etiky k jeho praktickej filozofii. Studia philosophica kantiana, n. 1, 2017, p. 42.
7 FUKUYAMA, F.: Liberalism...op. cit., p. 52.

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