A condição da mulher trabalhadora entre os governos Collor e FHC

AutorFlávia Maria Gomes Pereira - Lara Porto Renó - Patrícia Maeda
Páginas113-126

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Ver notas 1, 2 y 3

Sim, a precarização do trabalho em nosso país tem rosto de mulher. E é justamente aí que reside o perigo desta constatação: o que aconteceria se milhões de mulheres pobres, trabalhadoras terceirizadas, informais, donas de casa, desempregadas, esse verdadeiro exército silencioso, se levantasse de uma só vez contra todas as formas de opressão e contra este sistema que nos explora e superexplora cada vez mais?4

1. Introdução

Este estudo pretende enfrentar as principais questões acerca da condição da trabalhadora brasileira nos governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso (1990-2002). Trataremos inicialmente do contexto histórico, com apontamentos sobre o período após a redemocratização em cotejo com o panorama global de flexibilização e precarização do trabalho, e de seus reflexos para a mulher trabalhadora. Em seguida, apresentaremos a participação da mulher no mercado de trabalho, bem como as implicações das questões socioeconômicas (ou de classe), de gênero e de raça no cenário brasileiro.

Buscamos enfrentar algumas questões sobre a ocupação e composição da parcela feminina classe trabalhadora, seus processos de luta, as políticas públicas específicas desse momento histórico, em especial em razão da aplicação mais contundentes das políticas neoliberais, notadamente após a abertura da economia do país para o mercado externo e o início do Programa Nacional de Desestatização.

2. Contexto histórico

17 de dezembro de 1989. Fernando Collor de Mello elege-se para a presidência da República após o segundo turno nas primeiras eleições diretas desde 1960, um marco no processo de redemocratização do Brasil.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, havia uma grande expectativa de mudanças. Atualmente é difícil de entender como apenas a partir daquele momento histórico as mulheres passaram a ter igualdade jurídica com os homens, uma vez que se trata de algo tão elementar na nossa sociedade. Se ainda remanescem desigualdades materiais, não podemos esquecer que a própria igualdade de direitos entre homens e mulheres é uma conquista recente em termos de história no Brasil.

Outros ganhos significativos, especificamente para a trabalhadora brasileira, se relacionaram à maternidade: direito à licença-maternidade, garantia de emprego da trabalhadora gestante e dever do Estado de fornecer creches públicas.

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No entanto, em que pesem as conquistas enunciadas na Constituição Federal para a classe trabalhadora como uma forma de retribuir seu papel fundamental no processo de redemocratização, observamos, nesse período, a não realização das promessas do constituinte, sobretudo com relação aos direitos sociais. No plano da doutrina jurídica, eles são neutralizados, por exemplo, com a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais.

Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais.5

No plano jurídico-institucional, um modelo socializante surge das estruturas político-econômicas desenvolvimentistas que se deterioraram com o fim da ditadura, porém, sem correspondente na realidade econômico-social brasileira. Nesta se consolida o modelo hegemônico de cunho conservador liberalizante, de modo que "a violência do contraste chega ao ponto de tornar plenamente ignorado o sentido jurídico-institucional da Constituição de 1988"6.

A ineficácia das leis em sentido amplo perante a burguesia brasileira não foi privilégio desse período, pois decorre do próprio autoritarismo característico de nossa sociedade com raízes colonialista e escravocrata, como bem observa Mascaro:

A legalidade, como determinação do cumprimento dos contratos, aparato penal e defesa da propriedade privada, perde consistência quando versa, punitiva ou desfavoravelmente, em relação às próprias classes dominantes. Esta trajetória de domínio exacerbado, que não compreende as limitações da legalidade, mas só as possibilidades da sua instrumentalização, faz da legalidade, para mais que um instrumento de regulação da atividade mercantil e produtiva, uma arena da própria afirmação da efetivação social de poderes e hierarquias, e não de direitos e deveres.7

Além disso, o movimento neoliberal iniciado na década de 1970 nos países de capitalismo avançado passa a permear as relações sociais no Brasil após a redemocratização, trazendo consigo as propagandas da modernidade e da globalização como fundamento para "repensar o direito do trabalho", o que, no concreto, significava destruir a ideia de proteção do trabalhador como se fosse algo necessário, ou até mesmo inevitável, para o aumento de produtividade ou de competitividade no cenário global.

Portanto, de um lado, observamos um aparente aumento da proteção da classe trabalhadora, que teve importantes direitos reconhecidos como fundamentais na Constituição Federal. De outro, na materialidade das relações sociais, notamos os efeitos da flexibili-dade combinada com o ideário neoliberal, resultando em verdadeira precarização social. Não só os direitos sociais constitucionalmente previstos não se realizam imediatamente, mas também uma direção "flexibilizante" se revela no plano infraconstitucional.

As inovações adotadas nas relações de trabalho durante os anos 1990, como o banco de horas e a participação nos lucros e resultados, efetuadas em um contexto de elevado desemprego, ampliaram o grau de flexibilidade dos contratos de trabalho, provocando tanto a redução da proteção social quanto a desvalorização dos rendimentos do trabalho. Foram, assim, reiteradas as características da baixa renda e da precariedade que historicamente acompanharam o processo de construção do mercado brasileiro de trabalho, colocando em risco o próprio sistema de proteção social existente.8

Essa tragédia para a classe trabalhadora tem um significado próprio para a mulher. Afirmam Cattanéo e Hirata que a flexibilidade é sexuada, uma vez que, relacionada com a divisão sexual do trabalho, comporta duas formas: formações profissionais e polivalência para os homens (flexibilidade interna) e formas de em-

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prego "atípicas" (flexibilidade externa), tais como empregos precários, trabalho de tempo parcial e horários flexíveis, para as mulheres. Ao mesmo tempo em que o argumento da conciliação da vida familiar com a vida profissional legitima, a flexibilidade aumenta as desigualdades de gênero nas condições de trabalho, emprego, saúde e salários. As autoras ressaltam ainda que "A diferença salarial também é socialmente legitimada pela representação usual do salário feminino como renda complementar"9.

Reforça esse argumento a constatação de Lewkowics e Gutiérrez de que no Brasil atual persiste o "modelo de uma identidade feminina construída em torno do mundo doméstico, segundo o qual cabem às mulheres as responsabilidades do lar e a educação dos filhos"10. E isso, como veremos, gera consequências no mercado de trabalho. A conciliação da vida profissional com a pessoal é um desafio eminentemente feminino, cuja reflexão deve considerar o que Hirata e Kergoat chamam de "modalidades de reprodução da servidão doméstica".

A socialização familiar, a educação escolar, a formação na empresa, esse conjunto de modalidades diferenciadas de socialização se combinam para a reprodução sempre renovada das relações sociais. As razões dessa permanência da atribuição do trabalho doméstico às mulheres, mesmo no contexto da reconfiguração das relações sociais de sexo a que se assiste hoje, continua sendo um dos problemas mais importantes na análise das relações sociais de sexo/ gênero. E o que é mais espantoso é a maneira como as mulheres, mesmo plenamente conscientes da opressão, da desigualdade da divisão do trabalho doméstico, continuam a se incumbir do essencial desse trabalho doméstico, inclusive entre as militantes feministas, sindicalistas, políticas, plenamente conscientes dessa desigualdade. Mesmo que exista delegação, um de seus limites está na própria estrutura do trabalho doméstico e familiar: a gestão do conjunto do trabalho delegado é sempre da competência daquelas que delegam.11

Como veremos, as relações sociais de sexo, compreendendo assim não apenas a questão de gênero, mas também a hierarquização decorrente das classes sociais, geram consequências no mercado de trabalho e nas condições de vida da mulher trabalhadora, que assume duplamente os encargos da precarização social.

3. Participação da mulher no mercado de trabalho

Bruschini e Lombardi12 analisam dados fornecidos pelo IBGE relacionados à participação feminina no mercado de trabalho na década de 1990 e observam a consolidação do acesso das mulheres ao trabalho nesse período e sua manutenção no mercado informal e formal, apesar das crises econômicas da década.

O aumento da participação feminina na população economicamente ativa (PEA) é explicado em parte porque em 1992, IBGE passa a incluir autoconsumo13, produção familiar e outras atividades até então não consideradas trabalho e realizadas predominantemente por mulheres. Isso resulta em uma maior visibilidade do trabalho...

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