Conformação teórica da coligação contratual

AutorFelipe Kirchner
Páginas17-238
1. Conformação Teórica da
Coligação Contratual
Embora a recente produção doutrinária brasileira48 enfrente o
tema da coligação contratual com qualidade e profundidade,49 a
dogmática latino-americana está atrasada em relação à produção
dos sistemas europeus que influenciam a constituição e a aplicação
do Direito Privado brasileiro. Nesse sentido Rebazza:
[...] es unicamente en referencia a Alemania, Italia y Francia
que resulta posible hablar de genuinos modelos jurídicos compa-
rados respecto a la materia que nos ocupa.
En cambio, ni en España ni en los distintos países de América
Latina se ha gestado uma genuina teoría general sobre la mencio-
nada realidad. Los juristas de estas latitudes, en mayor o menor
medida, han adoptado una actitud pasiva y receptiva. Es decir,
han venido acogiendo e incorporando a sus propios sistemas los
esquemas conceptuales surgidos en los dos grandes modelos euro-
peo-continentales.50
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48 Na doutrina nacional, Pontes de Miranda já reconhecia a existência da
conexão contratual fulcrada no fim comum do negócio (PONTES DE MI-
RANDA, 1962, v. 38, p. 368), porém foi Bulgarelli quem primeiro se debru-
çou especificamente sobre o tema da conexidade no Brasil (BULGARELLI,
1997).
49 Em termos exemplificativos, cumpre mencionar a excelência das obras
de Konder, Marino, Leonardo, Kataoka, Iturraspe e Lorenzetti, expoentes do
pensamento latino-americano sobre o tema.
50 REBAZA, 2012, p. 161.
Contudo, nem mesmo nos sistemas continentais a maior refle-
xão sobre o tema culminou na formulação de uma teoria geral da
conexidade contratual e no aprofundamento dos elementos da res-
ponsabilidade civil nessa seara. Para além de inexistir obra especí-
fica destinada à execução dessa pretensão, percebe-se que o fazer
doutrinário, em cada ordenamento, pendeu para o exame de uma
determinada particularidade do fenômeno da coligação, atendendo
as dificuldades teóricas e demandas práticas – em especial deriva-
das da jurisprudência – que surgiram em cada contexto normativo.
Embora se trate de uma conclusão geral sobre a produção cien-
tifica – uma condenável simplificação, portanto –, há evidente ên-
fase da doutrina italiana na repercussão de invalidades e de ineficá-
cias entre os pactos coligados, enquanto os estudos franceses enfo-
cam, com especial relevo, as consequências da mitigação do princí-
pio da relatividade dos efeitos dos contratos em razão da cone-
xão.51 Dessa feita, analisados horizontalmente, os esforços da dog-
mática serviram para aprofundamento de temáticas próprias da co-
ligação, sem que tenham produzido uma centralidade de com-
preensão apta a conformar cientificamente a categoria da conexi-
dade contratual.
A formulação de uma teoria geral é dificultada pela multiplici-
dade e disparidade de situações envolvendo a conexidade contra-
tual, especialmente em termos de formas de estruturação da con-
tratação, níveis de intensidade variável de interdependência, tipos
contratuais afetados, campos jurídicos atravessados e profusão de
negócios concretizados.
A tese não comporta o estudo específico dos diversos tipos con-
tratuais afetados pelo fenômeno da conexidade, mas é interessante
apresentar um rol52 dos principais atos e negócios (não necessaria-
mente tipos contratuais) que podem ser estruturados de forma co-
ligada,53 a fim de demonstrar a amplitude e a importância ascen-
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51 KONDER, 2006, p. 113-114.
52 Para além de frisar que a listagem apresentada não é taxativa, cumpre
mencionar que, devido a importância prática, determinados negócios serão
apresentados em específico (ex. prestação de serviços educacionais), embora
pudessem ser enquadrados em outros mais abrangentes (ex. prestação de
serviços).
53 Cabe mencionar que determinados negócios são naturalmente conexos
dente da categoria em exame: (i) franquia;54 (ii) transferência de
tecnologia;55 (iii) plano de saúde;56 (iv) medicina ou terapia com-
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(ex. subcontratos e franquia), outros são estruturados por meio de forma
específica de coligação (v.g. rede contratual na franquia, no cartão de crédito
e no plano de saúde), enquanto para alguns a conexidade não é essencial e
atende a imperativo legal ou aos interesses das partes (ex. distribuição e
concessão comercial). Ainda, há negócios que se centram em determinado
campo do Direito Privado (v.g. franquia, produção just in time, project finan-
ce, leveraged buyout e joint venture, que dizem com relações empresariais) –
embora possam gerar responsabilidade vinculada a outras esferas em razão da
forma de execução da pactuação (ex. responsabilidade consumerista em
razão das peculiaridades do evento danoso) –, enquanto outros se prestam a
regulação de relações afetas a diversos setores (ex. compra e venda financia-
da).
54 LORENZETTI, 1999a, p. 168, 172-173, 175, 187, 193 e 200; LO-
RENZETTI, 2003, p. 34; ITURRASPE, 1999, p. 57-58; ÁLVAREZ-MAR-
TÍNEZ, 2000, p. 1; MARINO, 2010, p. 4, 96, 121, 175 e 187-189; KATAO-
KA, 2008, p. 49, 59, 64, 73, 143-145 e 186; NARDI, 2015, p. 181; ENEI,
2003, p. 122; CASCAES, 2018, p. 12; PENTEADO, 2007, p. 477 e 483;
BERGSTEIN, 2017, p. 6 e 8; CARVALHO, 2019, p. 434 e 455; FRUSTA-
GLI, 1997, p. 43, 48 e 54. Citam-se os seguintes precedentes judiciais:
AREsp 839.165/Sanseverino/2017 (franquia e comodato), AI 0014973-
82.2005.8.19.0000/TJRJ/Gaspar/2005 (franquia, cessão de estabelecimen-
to comercial e sublocação) e AC 1603483-4/TJPR/Fogaça/2017 (franquia e
sublocação).
55 Para além da transferência de tecnologia no contexto de negócios
específicos (v.g. franquia), menciona-se o know-how e os contratos de licen-
ça.
56 LORENZETTI, 1999a, p. 162, 164, 173, 192-194; LORENZETTI,
2003, p. 34; ITURRASPE, 1999, p. 39, 48, 170-174; MARINO, 2010, p.
96; KATAOKA, 2008, p. 106, 113-116, 123, 129; LEONARDO, 2013b, p.
19; ENEI, 2003, p. 121; GOMES, 2006, p. 214; GOMES, 2016, p. 1;
BAGGIO TORRES, 2007, p. 174; NARDI, 2015, p. 188-192; PENTEA-
DO, 2007, p. 483-484; BERGSTEIN, 2017, p. 7; ÁLVAREZ-MARTÍNEZ,
2000, p. 1; FENDRICH; SILVA, 2020, p. 3; FAJNGOLD, 2019, p. 360. O
STJ tem uma série de paradigmas versando sobre a responsabilidade na
contratação coligada em planos de saúde. No AREsp 1.329.381 (Belliz-
ze/2018) a Corte entendeu que “não se pode ignorar a existência de uma
coligação contratual entre o nosocômio que cede as instalações e o profissio-
nal médico credenciado e autorizado a atuar nestas dependências hospitala-
res.” O AREsp 1.566.957 (Ferreira/2019) tinha como objeto a verificação de
responsabilidade da operadora por deficiência de serviços prestado por hos-

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