A consolidação substancial
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A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL
3.1 ORIGEM E NOÇÃO DA CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL
Existem duas soluções judiciais que, de um modo geral, são empregadas pelas
principais economias mundiais para lidar com a crise da empresa. A primeira
permite a reorganização1 da atividade e a repactuação das obrigações do devedor
no intuito de permitir a superação da crise e a manutenção da empresa2. A segunda
promove a liquidação e a reversão dos ativos do devedor para pagamento dos
seus credores, segundo uma ordem preestabelecida (o que normalmente é feito
por meio da falência)3. Embora se submetam a lógicas diferentes, essas soluções
1. Por reorganização, pretende-se referir, em sentido amplo, aos mecanismos judiciais que têm por objetivo
a superação da crise econômico-nanceira por meio da reestruturação da empresa ou do seu passivo,
com vistas à manutenção da atividade empresarial, sem relacioná-la, portanto, a nenhum ordenamento
especíco. O termo poderia, sem prejuízo, ser substituído por reabilitação, recuperação ou qualquer
outro que expresse essa mesma ideia (cf. FRANCO, Gustavo Lacerda. A administração da empresa
em recuperação judicial: entre a manutenção e o afastamento do devedor. São Paulo: Almedina, 2021.
p. 26-27).
2. De acordo com a atual lei concursal brasileira, a reorganização do devedor é promovida pela recupe-
ração judicial ou extrajudicial, valendo notar que mesmo esta última tem sua ecácia subordinada à
homologação do juiz (LRF, art. 165, caput).
3. Embora a liquidação dos ativos para pagamento dos credores normalmente ocorra por meio da falência
(que importa desapossamento do devedor), algumas legislações, como a norte-americana, permitem
que o próprio devedor conduza a liquidação dos seus ativos, acordando com os credores a forma como
ela será feita, segundo procedimento semelhante da recuperação judicial. No Brasil, como se vinculou
a recuperação judicial ao objetivo de superação da crise do devedor (LRF, art. 47), a ideia de utilizar
a recuperação judicial meramente para organizar a liquidação sob a batuta do devedor, em oposição
ao que ocorre na falência, parece ser, a princípio, contrária à lógica do sistema, especialmente porque,
no nosso sistema, diversos credores cam de fora da recuperação. Esse proceder, no entanto, não é
totalmente incompatível com a preservação da empresa, já que, a depender da forma como for feita a
alienação dos ativos, a empresa pode continuar existindo (nos seus pers objetivo e funcional) sob outra
titularidade. Além disso, considerando a ineciência da falência no Brasil, mais uma vez demonstrada
por pesquisas recentes (vide nota de rodapé n. 466 do Cap. 2), talvez seja o caso de repensar o sistema
atual para admitir que, respeitados determinados critérios, o devedor possa conduzir o procedimento
de liquidação dos seus ativos e negociar com os seus credores a forma de pagamento das dívida mesmo
quando o objetivo desse processo não for a superação da crise ou a manutenção da sua atividade, mas
meramente maximizar os seus recursos e gerar o maior proveito possível para os credores e, se possível,
aos acionistas (coisa que, aliás, já vem ocorrendo na prática, ainda que de modo velado). De certa forma,
a recente inclusão do inciso VI no artigo 73 da LRF, promovida pela Lei 14.112/2020, endossa esse
modo de pensar. Ao dispor que o juiz determinará a convolação da recuperação judicial em falência
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RECUPERAÇÃO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS • PEDRO REbELLO bORtOLInI
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estão vinculadas, pois o fracasso da primeira implica a adoção da segunda: se a
empresa é incapaz de alcançar o reequilíbrio econômico-nanceiro, segue-se a
liquidação dos seus bens para pagamento dos credores.
Se os devedores compuserem um grupo empresarial, a primeira solução (re-
organização) demanda mecanismos que permitam enfrentar a repercussão da crise
entre as empresas, ao passo que a segunda (liquidação) deverá ser capaz de lidar
com os efeitos dessa repercussão quando não tenha sido possível superar a crise.
Conforme já referido4, grupos de empresas consistem num fenômeno de-
signado pela concorrência de pluralidade jurídica e unidade econômica. Embora
dotados de personalidades jurídicas distintas, seus integrantes subordinam-se
a uma direção unitária, que estabelece entre eles algum nível de integração ou
dependência econômica.
Por conta dessa relação, as diculdades particulares dos integrantes do grupo
podem se alastrar aos demais, de modo que a superação da crise passa a demandar
soluções coordenadas, conjuntas ou uniformes envolvendo as empresas efetiva
ou potencialmente afetadas, ou mesmo todo o grupo. Não sendo possível a re-
organização, seja porque os devedores foram incapazes de obter a concordância
dos seus credores, seja porque não conseguiram executar o plano proposto, a
consequência esperada é a liquidação de algumas ou de todas as empresas.
Tanto uma solução quanto outra costumam esbarrar em situações que
impedem ou tornam extremamente difícil distinguir os direitos e responsabi-
lidades de cada um dos devedores. Não é que a unidade econômica do grupo
necessariamente resulte no embaralhamento das personalidades jurídicas dos
seus integrantes. Aliás, é esperado pelo ordenamento que isso não ocorra, e que
os responsáveis pela condução das sociedades zelem para que a independência
jurídica entre elas seja respeitada. Porém, a observação empírica revela que os
limites das suas personalidades são frequentemente desrespeitados, produzindo
um embaralhamento entre as esferas jurídicas das empresas.
Por vezes, a incompetência e o descontrole administrativos são de tal or-
dem que os negócios das empresas do grupo se confundem a ponto de não ser
possível distinguir os ativos ou passivos de cada uma delas. Isso ocorre pela falta
ou incorreção da escrituração, utilização de caixa único, compartilhamento de
bens, sistemas e funcionários, entre vários outros expedientes.
quando identicado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da
empresa em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, a norma aparentemente autoriza,
por interpretação a contrario sensu, que a recuperação judicial promova a liquidação substancial do
devedor, desde que não implique prejuízo aos credores não sujeitos a ela.
4. Conra-se o item 2.1.
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Noutros casos, a separação dos direitos e obrigações das empresas será
apenas formal, mas não material, pois a estrutura plurissocietária do grupo
serve de mero instrumento para a prática de atividades espúrias, ou as múltiplas
sociedades do grupo são dirigidas sem o menor respeito às suas nalidades ou
interesses particulares, ao arrepio das regras de governança.
A depender do grau da disfunção estrutural, o grupo perde a pluralidade jurí-
dica, pois as sociedades deixam de corresponder a centros de imputação autônomos
(mesmo que formalmente mantenham condição), não sendo possível, então, dis-
tinguir os patrimônios individuais de cada uma delas. Essa circunstância repercute
tanto na liquidação quanto na reorganização, criando uma série de problemas.
Na liquidação das empresas do grupo, a principal diculdade se manifesta
na hora de determinar o acervo patrimonial a ser revertido para o pagamento
dos conjuntos de credores de cada devedor e a ordem de pagamento entre eles.
Quando não se pode atribuir determinado bem exclusivamente ao devedor “A”
ou ao devedor “B”, torna-se complicada a tarefa de decidir se o produto da sua
liquidação deverá reverter em proveito dos credores do primeiro ou do segundo
e em que medida. Da mesma forma que, sendo impossível estabelecer se alguém
é credor de “A” ou de “B”, não se tem segurança sobre o direito desse credor de
concorrer ao acervo de um devedor ou do outro. Ambas as coisas, ademais, im-
pactam diretamente na denição da ordem de pagamento dos credores.
No âmbito da reorganização, se os b ens e direitos do grupo não puderem
ser atribuídos ao patrimônio de nenhum dos devedores individualmente con-
siderados, haverá dúvida quanto à legitimidade de cada um deles para dispor
sobre esses bens e direitos no plano proposto aos credores, bem como da própria
prerrogativa dos credores de aprovar a destinação prevista no plano. Já a impossi-
bilidade de distinguir os passivos das empresas do grupo torna inviável denir o
poder de inuência dos credores no resultado da deliberação sobre as propostas
de reorganização dos devedores, que é estabelecido em razão da importância do
crédito no conjunto das dívidas de cada devedor.
Foi diante desses cenários que originalmente5 se desenvolveu a consolidação
substancial6, expediente pelo qual os devedores passam a ser tratados7 como uma
única entidade para determinados ns, com a mitigação ou completa superação
da sua independência patrimonial, que repercute tanto nos direitos e responsa-
bilidades deles próprios quanto nos dos seus credores.
5. Particularmente no direito norte-americano, conforme será exposto no item 3.2.1.
6. Cf. NEDER CEREZETTI, Sheila. Reorganization of corporate groups in Brazil: substantive consoli-
dation and the limited liability tale. Int. Ins olvency Review, 2021. p. 5. DOI: 10.1002/iir.1410.
7. Ou, em alguns casos, são efetivamente fundidos numa única entidade.
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