A consolidação substancial

Páginas265-406
3
A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL
3.1 ORIGEM E NOÇÃO DA CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL
Existem duas soluções judiciais que, de um modo geral, são empregadas pelas
principais economias mundiais para lidar com a crise da empresa. A primeira
permite a reorganização1 da atividade e a repactuação das obrigações do devedor
no intuito de permitir a superação da crise e a manutenção da empresa2. A segunda
promove a liquidação e a reversão dos ativos do devedor para pagamento dos
seus credores, segundo uma ordem preestabelecida (o que normalmente é feito
por meio da falência)3. Embora se submetam a lógicas diferentes, essas soluções
1. Por reorganização, pretende-se referir, em sentido amplo, aos mecanismos judiciais que têm por objetivo
a superação da crise econômico-nanceira por meio da reestruturação da empresa ou do seu passivo,
com vistas à manutenção da atividade empresarial, sem relacioná-la, portanto, a nenhum ordenamento
especíco. O termo poderia, sem prejuízo, ser substituído por reabilitação, recuperação ou qualquer
outro que expresse essa mesma ideia (cf. FRANCO, Gustavo Lacerda. A administração da empresa
em recuperação judicial: entre a manutenção e o afastamento do devedor. São Paulo: Almedina, 2021.
p. 26-27).
2. De acordo com a atual lei concursal brasileira, a reorganização do devedor é promovida pela recupe-
ração judicial ou extrajudicial, valendo notar que mesmo esta última tem sua ecácia subordinada à
homologação do juiz (LRF, art. 165, caput).
3. Embora a liquidação dos ativos para pagamento dos credores normalmente ocorra por meio da falência
(que importa desapossamento do devedor), algumas legislações, como a norte-americana, permitem
que o próprio devedor conduza a liquidação dos seus ativos, acordando com os credores a forma como
ela será feita, segundo procedimento semelhante da recuperação judicial. No Brasil, como se vinculou
a recuperação judicial ao objetivo de superação da crise do devedor (LRF, art. 47), a ideia de utilizar
a recuperação judicial meramente para organizar a liquidação sob a batuta do devedor, em oposição
ao que ocorre na falência, parece ser, a princípio, contrária à lógica do sistema, especialmente porque,
no nosso sistema, diversos credores cam de fora da recuperação. Esse proceder, no entanto, não é
totalmente incompatível com a preservação da empresa, já que, a depender da forma como for feita a
alienação dos ativos, a empresa pode continuar existindo (nos seus pers objetivo e funcional) sob outra
titularidade. Além disso, considerando a ineciência da falência no Brasil, mais uma vez demonstrada
por pesquisas recentes (vide nota de rodapé n. 466 do Cap. 2), talvez seja o caso de repensar o sistema
atual para admitir que, respeitados determinados critérios, o devedor possa conduzir o procedimento
de liquidação dos seus ativos e negociar com os seus credores a forma de pagamento das dívida mesmo
quando o objetivo desse processo não for a superação da crise ou a manutenção da sua atividade, mas
meramente maximizar os seus recursos e gerar o maior proveito possível para os credores e, se possível,
aos acionistas (coisa que, aliás, já vem ocorrendo na prática, ainda que de modo velado). De certa forma,
a recente inclusão do inciso VI no artigo 73 da LRF, promovida pela Lei 14.112/2020, endossa esse
modo de pensar. Ao dispor que o juiz determinará a convolação da recuperação judicial em falência
EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 265EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 265 09/02/2023 10:31:3409/02/2023 10:31:34
RECUPERAÇÃO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESASPEDRO REbELLO bORtOLInI
266
estão vinculadas, pois o fracasso da primeira implica a adoção da segunda: se a
empresa é incapaz de alcançar o reequilíbrio econômico-nanceiro, segue-se a
liquidação dos seus bens para pagamento dos credores.
Se os devedores compuserem um grupo empresarial, a primeira solução (re-
organização) demanda mecanismos que permitam enfrentar a repercussão da crise
entre as empresas, ao passo que a segunda (liquidação) deverá ser capaz de lidar
com os efeitos dessa repercussão quando não tenha sido possível superar a crise.
Conforme já referido4, grupos de empresas consistem num fenômeno de-
signado pela concorrência de pluralidade jurídica e unidade econômica. Embora
dotados de personalidades jurídicas distintas, seus integrantes subordinam-se
a uma direção unitária, que estabelece entre eles algum nível de integração ou
dependência econômica.
Por conta dessa relação, as diculdades particulares dos integrantes do grupo
podem se alastrar aos demais, de modo que a superação da crise passa a demandar
soluções coordenadas, conjuntas ou uniformes envolvendo as empresas efetiva
ou potencialmente afetadas, ou mesmo todo o grupo. Não sendo possível a re-
organização, seja porque os devedores foram incapazes de obter a concordância
dos seus credores, seja porque não conseguiram executar o plano proposto, a
consequência esperada é a liquidação de algumas ou de todas as empresas.
Tanto uma solução quanto outra costumam esbarrar em situações que
impedem ou tornam extremamente difícil distinguir os direitos e responsabi-
lidades de cada um dos devedores. Não é que a unidade econômica do grupo
necessariamente resulte no embaralhamento das personalidades jurídicas dos
seus integrantes. Aliás, é esperado pelo ordenamento que isso não ocorra, e que
os responsáveis pela condução das sociedades zelem para que a independência
jurídica entre elas seja respeitada. Porém, a observação empírica revela que os
limites das suas personalidades são frequentemente desrespeitados, produzindo
um embaralhamento entre as esferas jurídicas das empresas.
Por vezes, a incompetência e o descontrole administrativos são de tal or-
dem que os negócios das empresas do grupo se confundem a ponto de não ser
possível distinguir os ativos ou passivos de cada uma delas. Isso ocorre pela falta
ou incorreção da escrituração, utilização de caixa único, compartilhamento de
bens, sistemas e funcionários, entre vários outros expedientes.
quando identicado o esvaziamento patrimonial da devedora que implique liquidação substancial da
empresa em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, a norma aparentemente autoriza,
por interpretação a contrario sensu, que a recuperação judicial promova a liquidação substancial do
devedor, desde que não implique prejuízo aos credores não sujeitos a ela.
4. Conra-se o item 2.1.
EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 266EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 266 09/02/2023 10:31:3409/02/2023 10:31:34
267
3 • A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL
Noutros casos, a separação dos direitos e obrigações das empresas será
apenas formal, mas não material, pois a estrutura plurissocietária do grupo
serve de mero instrumento para a prática de atividades espúrias, ou as múltiplas
sociedades do grupo são dirigidas sem o menor respeito às suas nalidades ou
interesses particulares, ao arrepio das regras de governança.
A depender do grau da disfunção estrutural, o grupo perde a pluralidade jurí-
dica, pois as sociedades deixam de corresponder a centros de imputação autônomos
(mesmo que formalmente mantenham condição), não sendo possível, então, dis-
tinguir os patrimônios individuais de cada uma delas. Essa circunstância repercute
tanto na liquidação quanto na reorganização, criando uma série de problemas.
Na liquidação das empresas do grupo, a principal diculdade se manifesta
na hora de determinar o acervo patrimonial a ser revertido para o pagamento
dos conjuntos de credores de cada devedor e a ordem de pagamento entre eles.
Quando não se pode atribuir determinado bem exclusivamente ao devedor “A
ou ao devedor “B”, torna-se complicada a tarefa de decidir se o produto da sua
liquidação deverá reverter em proveito dos credores do primeiro ou do segundo
e em que medida. Da mesma forma que, sendo impossível estabelecer se alguém
é credor de “A” ou de “B”, não se tem segurança sobre o direito desse credor de
concorrer ao acervo de um devedor ou do outro. Ambas as coisas, ademais, im-
pactam diretamente na denição da ordem de pagamento dos credores.
No âmbito da reorganização, se os b ens e direitos do grupo não puderem
ser atribuídos ao patrimônio de nenhum dos devedores individualmente con-
siderados, haverá dúvida quanto à legitimidade de cada um deles para dispor
sobre esses bens e direitos no plano proposto aos credores, bem como da própria
prerrogativa dos credores de aprovar a destinação prevista no plano. Já a impossi-
bilidade de distinguir os passivos das empresas do grupo torna inviável denir o
poder de inuência dos credores no resultado da deliberação sobre as propostas
de reorganização dos devedores, que é estabelecido em razão da importância do
crédito no conjunto das dívidas de cada devedor.
Foi diante desses cenários que originalmente5 se desenvolveu a consolidação
substancial6, expediente pelo qual os devedores passam a ser tratados7 como uma
única entidade para determinados ns, com a mitigação ou completa superação
da sua independência patrimonial, que repercute tanto nos direitos e responsa-
bilidades deles próprios quanto nos dos seus credores.
5. Particularmente no direito norte-americano, conforme será exposto no item 3.2.1.
6. Cf. NEDER CEREZETTI, Sheila. Reorganization of corporate groups in Brazil: substantive consoli-
dation and the limited liability tale. Int. Ins olvency Review, 2021. p. 5. DOI: 10.1002/iir.1410.
7. Ou, em alguns casos, são efetivamente fundidos numa única entidade.
EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 267EBOOK RECUPERACAO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESAS.indb 267 09/02/2023 10:31:3409/02/2023 10:31:34

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT