A evolução da recuperação judicial dos grupos de empresas no Brasil

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A EVOLUÇÃO DA RECUPERAÇÃO
JUDICIAL DOS GRUPOS
DE EMPRESAS NO BRASIL
1.1 CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL: A EXCEÇÃO QUE VIROU REGRA
A consolidação substancial consiste numa técnica segundo a qual, em pro-
cessos de falência ou de reorganização, os patrimônios distintos das sociedades
integrantes de um grupo são considerados, para determinadas nalidades, como
se constituíssem um único patrimônio indiviso, com a mitigação ou superação
da autonomia existente entre as personalidades jurídicas dessas sociedades. Tra-
ta-se, em princípio, de um mecanismo de adoção excepcional, reservado apenas
aos casos de insuperável embaralhamento jurídico entre as sociedades, que não
permite distinguir os direitos e responsabilidades individualmente imputáveis
a cada uma delas.
A despeito da gravidade dessa medida, que subverte um dos pilares fun-
damentais do direito societário, os primeiros dez anos da Lei 11.101/2005 re-
gistram número impressionante de casos em que a consolidação substancial foi
implementada, mesmo sem previsão normativa que autorizasse e, na maioria
das vezes, sem que tivesse sido deferida pelo juiz ou consentida pelos credores1.
A falta de familiaridade dos operadores do direito com processos de in-
solvência de grupos2 e a ausência de disciplina especíca sobre o assunto (que
só foi introduzida pela Lei 14.112/2020) contribuíram para que a consolidação
1. Cf. NEDER CEREZETTI, Sheila. Reorganization of corporate groups in Brazil: substantive consoli-
dation and the limited liability tale. Int. Insolvency Review, 2021. p. 8. DOI: 10.1002/iir.1410.
2. O direito concursal, por todas as suas especicidades e complexidades, é ramo pouco conhecido pela
maior parte dos operadores do direito, inclusive juízes, promotores e a imensa maioria dos advoga-
dos, que não costumam atuar com habitualidade em processos de recuperação judicial e falência. As
diculdades decorrentes dessa situação caram ainda mais evidentes por ocasião da edição da Lei
11.101/2005, que promoveu verdadeira revolução na disciplina das empresas em crise, tanto do direito
material quanto do direito processual, rompendo com um regime que vigorava fazia mais de meio
século e introduzindo uma sistemática particularmente complexa.
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RECUPERAÇÃO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EMPRESASPEDRO REbELLO bORtOLInI
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substancial fosse silenciosamente3 implementada a partir da mera admissão do
litisconsórcio ativo na recuperação judicial4.
Ao ajuizar a recuperação judicial, era muito comum que os devedores
apresentassem a relação das suas dívidas sem diferenciar os credores de cada um
deles, ou que o próprio administrador judicial conduzisse o procedimento de
vericação dos créditos sem fazer essa distinção. Seguia-se então a formulação
de planos de recuperação unicados, que tratavam do pagamento das dívidas dos
diversos devedores de forma indistinta, os quais eram submetidos a uma única
assembleia de credores5 (tudo, repita-se, sem autorização judicial alguma e, em
boa parte dos casos, sem que os principais atores do processo se dessem conta
do que estava ocorrendo).
Pesquisa conduzida pelo Observatório da Insolvência6, que analisou pro-
cessos de recuperação judicial distribuídos em todas as comarcas do Estado
de São Paulo no período de janeiro de 2010 a julho de 2017 (1.194 processos)7,
apurou que pouco mais de 20% das ações foram ajuizadas em litisconsórcio ativo
(270 processos), admitido em cerca de 95% dos casos. Considerando apenas os
processos em que houve alguma AGC (203), a consolidação substancial ocorreu
em mais de 80% dos casos8. Entre estes, a medida foi implementada sem decisão
em quase 90% das vezes9.
3. Cf. NEDER CEREZETTI, Sheila Christina; SATIRO, Francisco. A silenciosa “consolidação” da con-
solidação consubstancial, cit.
4. Pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos de Direito das Empresas em Crise (Gedec), da Faculdade de
Direito da USP, que analisou processos de recuperação judicial iniciados entre 1º de setembro de 2013
e 1º de outubro de 2015 nas duas varas de falência que então havia na comarca de São Paulo, apurou
que, entre os 41 pedidos de recuperação judicial formulados por grupos de empresas, a cumulação de
autores foi admitida em 32 casos, sendo que em apenas quatro ocorreu a diferenciação entre o deferi-
mento da consolidação processual e a consolidação substancial. Esse estudo foi realizado entre outubro
de 2015 e junho de 2016, e seus resultados foram divulgados no artigo “A silenciosa ‘consolidação’ da
consolidação consubstancial”, acima citado.
5. Cf. NEDER CEREZETTI, Sheila Christina; SATIRO, Francisco. A silenciosa “consolidação” da con-
solidação consubstancial, cit., p. 222.
6. O Observatório da Insolvência é uma iniciativa do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência
(NEPI) da PUC-SP em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), coordenada pelos
Professores Marcelo Barbosa Sacramone, Marcelo Guedes Nunes, Ivo Waisberg, Fernando Corrêa e
Julio Trecenti.
7. A coleta dos dados, inici almente realizada entre fevereiro e junho de 2018, foi atualizada entre outubro
e dezembro de 2009. A metodologia e o resultado completo da pesquisa podem ser consultados em
SACRAMONE, Marcelo Barbosa; NUNES, Marcelo Guedes (Coord.). Direito societário e recuperação
de empresas: estudos de jurimetria. São Paulo: Foco, 2022. p. 3-41.
8. Esse percentual foi de 79,7% em processos que tramitaram em varas comuns e de 89,1% em processos
que tramitaram nas varas especializadas em falência da Capital.
9. Nas varas especializadas na capital de São Paulo (onde se esperaria haver análise mais criteriosa), a
consolidação substancial foi implementada, sem decisão, em 92% dos processos, índice superior a
mesmo àquele vericado nos feitos que tramitaram em varas comuns (87,6%).
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1 • A EVOLUÇÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DOS GRUPOS DE EmPRESAS NO BRASIL
As cortes somente começaram a perceber o que estava se passando (e a
compreender a noção de consolidação substancial) contemporaneamente à pu-
blicação, em 2015, de artigo da Professora Sheila Neder Cerezetti que tratou da
interação do direito societário com a recuperação judicial dos grupos10.
Nesse trabalho seminal, de grande difusão nos meios acadêmico e forense,
a autora expôs o conceito de consolidação substancial, sua origem, fundamen-
tos e aplicação no direito norte-americano, demonstrando que ela não era uma
consequência automática do ajuizamento da ação em litisconsórcio (que impli-
cava mera consolidação processual), nem deveria ser implementada de forma
indiscriminada, muito menos sem prévia autorização do juiz ou concordância
dos credores.
A partir de então, o tema da consolidação substancial ganhou exponencial
interesse dos tribunais brasileiros, sobretudo por conta dos pedidos de recupe-
ração judicial formulados por grandes grupos de sociedades (OGX, OAS, Rede
Energia, PDG, Viver, OI, Odebrecht, entre outros) em decorrência do agrava-
mento da crise e dos reexos da operação “Lava-Jato.
Em pesquisa fonética realizada pelo autor deste trabalho em agosto de 2017
na base de dados da Imprensa Ocial do Estado de São Paulo, que reúne todas
as publicações feitas no Diário Ocial de São Paulo desde maio de 1891, foram
encontrados 125 resultados para os termos “consolidação substancial” ou “con-
solidação substantiva, sendo o mais antigo de 28.09.2015. Renovada a pesquisa
em março de 2021, houve 1.392 resultados, o que corresponde a aumento de mais
de 11 vezes em menos de quatro anos. Procedeu-se, ainda, a idêntica pesquisa na
base de dados das decisões e acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo, que
obteve, em agosto de 2017, apenas 60 resultados, sendo os mais antigos relativos
a agravos de instrumento11 julgados em 31.08.2015. Já a renovação d a pesquisa
feita em março de 2021 gerou 482 resultados, isto é, oito vezes mais.
Mesmo depois que os tribunais passaram a diferenciá-la da consolidação
processual (esta resultante do mero litisconsórcio passivo), a consolidação subs-
10. CEREZETTI, Sheila Neder. Grupos de sociedades e recuperação judicial: o indispensável encontro
entre direitos societário, processual e concursal. In: YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme
Setoguti J. (Coord.). Processo societário II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 735-789. Na pesquisa
bibliográca realizada pelo autor da presente obra, foi encontrado um único trabalho nacional anterior
acerca do tema. Publicado em 1998, Gilberto Deon Corrêa Júnior havia exposto a teoria da consolida-
ção substancial no direito norte americano (A consolidação substantiva no direito norte-americano.
Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 73, p. 320-335, 1998).
11. Interpostos contra decisão proferida na recuperação judicial do grupo OAS (TJSP, 2ª Câmara Reser vada
de Direito Empresarial, AI 2094999-86.2015.8.26.0000, AI 2084379-15.2015.8.26.0000, AI 2094999-
86.2015.8.26.0000,rel. Des. Carlos Alberto Garbi, todos julgados em 31.08.2015). Registra-se, contudo,
que a menção ao termo “consolidação substantiva” consta apenas do relatório dos acórdãos.
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