Constitucionalismo da Inimizade/The Constitucionalism of Emnity.

AutorPires, Thula Rafaela de Oliveira

Introdução

Diante do chamado para pensarmos sobre "Constitucionalismos", evocamos a experiência Palmarina para oferecer marcos históricos, conceituais e metodológicos que possam ampliar nossa imaginação político-constitucional.

Partimos da hipótese de que os modelos constitucionais que serviram de ponto de referência para o pensamento constitucional brasileiro, notadamente os desenvolvidos a partir da Revolução Francesa e do processo de Independência estadunidense, obliteraram disputas políticas concretas que, naquele mesmo contexto, enunciavam diferentes projetos de nação, de Estado, de Direito, de Democracia. Esse repertório que se tornou hegemônico, foi sempre muito pouco permeável ao enfrentamento das violências sofridas por pessoas negras em diáspora.

Tomando a amefricanidade, desenvolvida por Lélia Gonzalez (2020), como ponto de oríentação (1) conceitual e metodológica, buscamos a partir da resistência de mulheres negras e indígenas à penetração colonial (MAMA, 1997, p. 48) as diretrizes sobre limitação de poder e garantia de liberdades que, em alguma medida, definiram os contornos do constitucionalismo brasileiro. A categoria político-cultural da amefricanidade permite a releitura do processo histórico da diáspora africana na colonialidade, atribuindo centralidade às interpretações ameríndias e africanas sobre a formação das bases materiais e simbólicas dos processos de distribuição desproporcional do poder e da violência no contexto da Améfrica Ladina.

Nesse sentido, a primeira parte do artigo se dedicará a explicitar os duplos da herança constitucional francesa e estadunidense. Pretendemos tornar explícitas as dimensões presentes naqueles modelos constitucionais, fundamentais para sua estruturação, mas que costumam ser obliteradas ou tratadas como laterais. Em seguida, apresentaremos alguns elementos que nos permitem perceber a experiência política Palmarina como um modelo, dentre outros possíveis, de constitucionalismo amefricano. Por fim, nos dedicaremos a desenvolver a ideia de Constitucionalismo da Inimizade como

o modelo que organizou o constitucionalismo brasileiro desde sua formação nacional.

  1. Os duplos da herança constitucional francesa e estadunidense

    Recorremos à noção de duplo para pensar a herança constitucional francesa e estadunidense, por considerarmos que diferentemente das noções teóricas que apelam para a exceção, o continuum de violência sobre pessoas negras na diáspora africana representa não o desvio ou a antítese dos modelos analisados, mas uma presença-ausente sobre as quais se sustentam as promessas modernas. Dito de maneira mais direta, o sistema colonial e o escravismo representam o duplo da democracia e do constitucionalismo: "os despojos e tesouros culturais dos vencedores não podem ser separados da vidas dos derrotados e de seus corpos jogados no chão" (HARTMAN, 2021, p. 269).

    O mundo colonial não era a antítese da ordem democrática. Sempre foi o seu duplo ou, até, a sua face nocturna. Não há democracia sem o seu duplo - a colônia, pouco importa o seu nome e estrutura. Esta não é exterior à democracia nem está necessariamente situada fora de portas. A democracia contém em si a colônia, tal como a colônia contém a democracia, muitas vezes mascarada.

    Como afirmava Frantz Fanon, esta face noturna esconde, na verdade, um vazio primordial e fundador - a lei que encontra a sua origem no não-direito e que se institui como lei fora da lei. A este vazio fundador junta-se um segundo vazio, desta vez, de conservação. Estes dois vazios estão estritamente imbricados um no outro. Paradoxalmente, a ordem política democrática da metrópole precisa deste duplo vazio, primeiro, para fazer valer a existência de um contraste irredutível entre si e o seu avesso aparente; depois, para alimentar os recursos mitológicos e para melhor esconder o seu interior, tanto por dentro como por fora. (MBEMBE, 2017, p. 49-50).

    O constitucionalismo moderno costuma ser apresentado como fruto do processo histórico, político, jurídico, econômico e cultural que se desencadeou, sobretudo no século XVIII, a partir das Revoluções Liberais-Burguesas (BONAVIDES, 2001; CANOTILHO, 2002; SARMENTO, 2013). Ainda que haja especificidades entre os modelos desenvolvidos pela experiência constitucional inglesa, francesa e estadunidense nesse mesmo período, o Antigo Regime funcionou como modelo de organização jurídico-política a ser superado, cabendo ao constitucionalismo moderno assumir o compromisso com a limitação do poder dos governantes como forma de garantir a liberdade para governados.

    Conforme explicitamos acima, há duplos no processo de definição de como se limita o poder e como se distribui as liberdades (o que se entende por liberdade, inclusive) que não costumam ser explorados pelas leituras mais hegemônicas, ainda que críticas. Não se pretende fazer uma revisão de literaturas hegemônicas para, a partir delas, pensar os duplos. Ao contrário, são as experiências de resistência amefricana que nos guiam na percepção acerca da face noturna do constitucionalismo moderno. Nesse sentido, nos dedicaremos a pensar alguns aspectos do modelo francês e estadunidense, por entendermos que dialogam mais diretamente com as construções constitucionais que informaram o constitucionalismo brasileiro.

    A experiência constitucional estadunidense, quando tensionada em seus pressupostos pela filosofia política, por Charles Mills (2013) com o contrato racial ou por Carole Pateman (1993) com o contrato sexual, é apresentada a partir da noção de contrato social como um pacto "manipulador e excludente empregado pelos poderosos para subordinar outros na sociedade sob o pretexto de incluí-los como iguais" (MILLS, 2013, p. 22). Um contrato que não apenas mantém, como fomenta a desigualdade a partir da legitimação da regulação política do estado liberal.

    O redimensionamento proposto para leitura do contratualismo nos indicam que as constituições modernas que nos foram apresentadas como um modelo de organização de uma sociedade civil preocupada com a limitação do poder e garantia das liberdades, tem como duplo um modelo jurídico-político de legitimação do terror racial e do terror sexual. Um processo de distribuição desproporcional do poder e da violência que permite a acumulação da riqueza pelos homens brancos e, sem a necessidade do consentimento dos não brancos, institui para os brancos o direito de dominar, exterminar e controlar negras/os e indígenas, fazendo com que as demais mulheres - reduzidas ao papel social da esposa - também vivenciem a servidão (PATEMAN, 1993, p. 176).

    O duplo do constitucionalismo estadunidense pode ser descrito de múltiplas

    formas, mas, recorreremos a descrição oferecida por Hartman (2022, p. 103 e seguintes.

    Todos os grifos no original):

    O Sétimo Distrito era um lugar maravilhoso e arruinado, o coração de uma metrópole negra e diversa, o embrião de um gueto emergente. A Filadélfia abrigou a maior população negra da região nordeste até 1900, quando o cinturão negro de Nova York superou a região, e Chicago tomou o seu lugar como a segunda maior cidade da nação. Mas, em 1896, o lugar era impressionante. Desde 1780, a Filadélfia tinha sido um laboratório para o experimento da democracia racial da nação e o palco principal em que se encenava o futuro pós-escravidão. A cidade se vangloriava de uma história dourada de triunfos e realizações. A primeira lei de emancipação gradual da escravidão foi aprovada em 1780. A Sociedade Africana Livre foi estabelecida em 1787, e as portas da Igreja Metodista Episcopal Africana Bethel se abriram em 1794. A Sociedade Antiescravagista Americana foi fundada em 1833. Antes da Guerra Civil, a cidade era lar da maior comunidade negra livre do país, e ostentava uma pequena e próspera elite negra. Mas havia outro lado; um surto de febre amarela em 1793 havia delimitado fronteiras raciais na cidade. Os moradores negros foram culpados pela propagação da epidemia, recrutados para cuidar dos doentes e transportar os mortos, e em seguida incriminados por atos de roubo e extorsão que supostamente aconteceram durante a crise. A Penitenciária Estadual do Leste abriu em 1829 e inaugurou a prática do confinamento solitário. Seu primeiro prisioneiro foi Charles Williams, um negro. Em 1838, os negros perderam o direito de voto depois que o Legislativo decidiu que cidadãos negros e brancos não eram iguais perante os olhos da lei e modificaram as qualificações para o sufrágio, antes previsto para todo homem livre e agora para todo homem branco, livre, de 21 anos ou mais, e que pagasse impostos. Os levantes raciais de 1839, 1842, 1849 e 1871 agitaram a cidade e atestaram o significado de escravidão e liberdade, de cidadão e estrangeiro em solo nortista. Os homens negros não recuperaram o direito de voto até 1870, quando a décima quarta e a décima quinta emendas foram ratificadas. [...] Após o compromisso de 1876 que deu fim à Reconstrução e restituiu a escravidão no Sul sob os disfarces da escravidão por dívida, parceria rural, servidão doméstica e o sistema de arrendamento de condenados, ondas de migrantes negros começaram a chegar na cidade. Eles fugiam da plantation e se juntavam nas ruas. [...] A cada ano mais e mais negros inundavam o distrito, o que concentrava as mortes e a pobreza da cidade no quarteirão negro e tornava mais difícil enxergar além do gueto ou sonhar em escapar dele algum dia. [...] Três décadas após a Emancipação, a liberdade era um experimento aberto. [...] O longo e contínuo movimento dos negros em direção às cidades do Norte deixou claro as implicações políticas da fuga, embora a ideia de que a recusa da plantation fosse uma greve geral ainda não tivesse lhe ocorrido [Du Bois]. [...] Incapazes de moldar o mundo segundo seus próprios termos, ao menos elas podiam resistir ao mundo que lhes era imposto. O movimento coletivo contra a servidão e a dívida, a fuga coreografada do estupro, do terror e do linchamento era uma reiteração, uma segunda onda de um êxodo...

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