Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso/Digital Constitutionalism: contradictions of a loose concept.

AutorPereira, Jane Reis Gonçalves

Introdução

Embora gestada como um sistema e uma ideologia de organização da esfera pública estatal, a ideia de constitucionalismo tem assumido centralidade na teorização sobre as manifestações emergentes de poderes internacionais e privados. As transformações das últimas décadas, tanto no plano do exercício dos poderes estatais--progressivamente influenciados pela ordem transnacional--,quanto na ampliação e fortalecimento dos poderes privados em escala global, impulsionaram um esforço de compreensão e conceituação que parece longe de alcançar uniformidade.

Diversas formulações contemporâneas empregam os termos constituição e constitucionalismo para explicar as mudanças no funcionamento dos poderes e os sistemas normativos que ultrapassam ou sobrepõem o estado-nação e seus limites territoriais. São exemplos dessa tendência as noções de pluralismo constitucional, constitucionalismo societal, constitucionalismo global, constitucionalismo transnacional e constitucionalismo multinível. É nessa paisagem de disputa conceitual e multiplicação de teorias que se insere a expressão constitucionalismo digital, usada nos últimos tempos, sem consenso ou coesão, para descrever diversos fenômenos e práticas jurídicas relacionadas à proteção de direitos no âmbito de tecnologias digitais, e, em especial, na Internet.

Como referência dos processos de digitalização da informação, a Internet inspira releituras das relações políticas e sociais desde sua expansão para o uso civil, na década de 1990. Ao mesmo tempo em que são diagnosticadas substanciais alterações da equação dos poderes públicos e privados deflagradas por um novo contexto tecnológico, as demandas por organização política e aplicação do direito são influenciadas por categorias e conceitos clássicos, forjados pela teoria política moderna. São invocados, por exemplo, novos pactos deliberativos (BARLOW, 1996), o reconhecimento de uma esfera pública digital (DE BLASIO et al, 2020; HELDT, 2020; PAPACHARISSI, 2008), bem como a aplicação dos princípios associados ao estado de direito (RISCH, 2018; REED; MURRAY, 2018, p. 200-230; SUZOR, 2018).

Na confluência dos dois fenômenos--constitucionalismo e digitalização--,despontam as diversas teorias que têm empregado, com cada vez mais frequência, a expressão "constitucionalismo digital". Apesar da reivindicação de um constitucionalismo digital transitar nos debates sobre a Internet desde o início da década de 2000, a expressão se popularizou nos últimos anos como uma moldura para diversas teorias sobre positivação e operacionalização de direitos constitucionais em ambientes digitais. Nesse amplo espectro, a literatura registra tratamentos diversos do "constitucionalismo digital", que, como veremos, englobam desde abordagens descritivas de determinados fenômenos normativos até a ideia de uma "ideologia que adapta os valores do constitucionalismo contemporâneo à sociedade digitalizada" (CELESTE, 2019a, p. 77). Diante da multiplicidade de usos com objetivos distintos, o constitucionalismo digital é ainda um conceito impreciso, de valor epistêmico enfraquecido. As variadas tentativas de dar densidade à expressão têm gerado usos com sentidos ora contraditórios, ora redundantes, dificultando o avanço dos debates sobre o tema. No que se refere ao próprio uso do termo constitucionalismo, o conceito em análise carrega o risco de funcionar como mero artifício retórico que confere aparência de legitimação a sistemas normativos com funcionalidades e efeitos muito distantes dos valores que informam os sistemas constitucionais liberais.

Partindo de tal cenário, o presente artigo tem por objetivo promover uma análise crítica dos variados usos da expressão constitucionalismo digital. À luz da compreensão do constitucionalismo tradicional como fenômeno político e institucional, propomos uma discussão sobre as inconsistências e os riscos do empréstimo da carga simbólica da tradição constitucionalista para explicar e nomear fenômenos normativos transnacionais e em ambientes privados digitalizados. Tendo como ponto de partida as críticas da literatura à matriz teórica do constitucionalismo digital, discutimos também como as mesmas reverberam nesse campo, apontando inconsistências e riscos na aplicação do conceito.

Em relação ao escopo deste trabalho, a expressão "constitucionalismo digital", em seu sentido mais amplo, refere-se à proteção de direitos constitucionais em diversas tecnologias digitais. Não se esgota, assim, no debate sobre a Internet e as plataformas digitais, também se associando a tecnologias de inteligência artificial, proteção de dados, e, mais recentemente, às tecnologias quânticas. A despeito da ênfase nas discussões em torno do constitucionalismo digital como mecanismo de normatização das relações nas--e combate ao acúmulo de poder das--plataformas digitais, o presente trabalho é informado por essa perspectiva ampla. Onde pertinentes, as abordagens focadas em debates específicos são trazidas à discussão, em especial considerando a intersecção entre matérias e tecnologias específicas e as atividades das plataformas digitais.

O trabalho se organiza da seguinte forma. Na seção 1, estabelecemos as bases conceituais para a análise do constitucionalismo digital discutindo a disputa teórica em torno dos conceitos de constituição e constitucionalismo. Notadamente, questionamos a possibilidade do uso desses termos em sentido diverso daquele que esteve na base de sua formulação pela teoria política moderna, com foco na sua instrumentalização para finalidades iliberais e transposição para dinâmicas operadas à margem do estado. Na seção 2, fazemos uma recapitulação das reivindicações dos postulados da democracia moderna--como o constitucionalismo, o estado de direito e democracia representativa--no ambiente da Internet, enquanto epítome das tecnologias digitais em rede. Com base nesse exercício, localizamos o contexto teórico em que se disputam os meios para garantia de direitos online--onde se encaixa o constitucionalismo digital--em um grupo de teorias que inclui o constitucionalismo global e o constitucionalismo societal, que se alinham ao pluralismo constitucional para reformular os conceitos de constituição e constitucionalismo. Em seguida, a seção 3 traz o mapeamento dos usos atuais do constitucionalismo digital, de forma a destacar a desordem conceitual e as contradições que comprometem o emprego atual da expressão. Por fim, na seção 4, exploramos os limites, contradições e riscos do emprego da noção de constitucionalismo digital a partir das críticas da literatura direcionadas à sua matriz teórica. O artigo é finalizado com uma breve reflexão sobre a indispensabilidade da constituição para mitigar assimetrias de poder mesmo--e principalmente--em contextos de transformação advindos da globalização e de alterações das dinâmicas do poder privado.

  1. Constitucionalismo como invenção moderna e suas características

    O debate sobre o conceito de constitucionalismo está diretamente conectado com o entendimento sobre o que é uma constituição. De um ponto de vista genérico, a ideia de constituição pode ser intuitivamente relacionada à forma de ser das coisas, ao modo pelo qual um conjunto de partes constituem o todo. Nesse significado, a constituição é pensada a partir do significado comum da palavra, tal como é empregada na linguagem corriqueira e descrita nos dicionários. Transposto para a perspectiva da organização política, esse emprego "constituição" alude ao arranjo social e à forma de governo de uma comunidade, ou seja, à maneira como as estruturas de poder estão organizadas e aos valores prevalentes. É com esse sentido, por exemplo, que Ferdinand Lassale (2007) discute a noção de constituição como expressão dos fatores reais de poder. Em linha semelhante, enumerando os significados constantes dos dicionários e refletindo sobre estrutura e composição do poder e do governo, Charles McIlwain (1991, p. 42 e ss.) defende a existência de uma concepção antiga de constituição e do constitucionalismo, distinta da sua conotação moderna.

    Na tradição da teoria política moderna, contudo, o constitucionalismo é expressão de um movimento político e jurídico que eclode no seio das revoluções liberais do século XVIII. Ele nasce, portanto, como uma doutrina particular de organização política que tem como cerne uma constituição jurídica, entendida como um instrumento normativo de instituição e regulação do governo, orientado à limitação do exercício do poder e à proteção dos indivíduos. Historicamente, a ideia de constituição é inventada como ferramenta do direito destinada a conter o arbítrio e racionalizar o exercício da autoridade, uma criação institucional que busca implementar a ideologia liberal. Nesse contexto, constituição e constitucionalismo não são construídos como conceitos neutros ou meramente descritivos da forma de existência de uma sociedade. Ao contrário, eles emergem com propósito e significado bem definidos: dotar o Estado de uma determinada constituição, ou seja, de uma estrutura normativa, distinta daquela do Estado Absoluto, que promove as liberdades cidadãs por meio do controle do poder político (OTTO, 1987; PASQUINO, 1998; TROPER; JAMME, 1994).

    Duas heranças informam a construção do constitucionalismo. Na origem, a matriz europeia prioriza o conteúdo da constituição, concebida como ordem normativa que incorpora os direitos humanos e a separação de poderes (1). Esse é o sentido inicial na tradição francesa. Nos Estados Unidos, diversamente, a constituição é articulada como um documento dotado de superioridade normativa, uma ferramenta de limitação do poder que não só contempla estruturas e princípios liberais, mas assume posição hierárquica superior na ordem jurídica, com a atribuição ao poder judiciário da função de garantir sua aplicação (judicial review) (FIORAVANTI, 2000, p. 97-125). Na conjugação das duas tradições, o constitucionalismo passa a pressupor não apenas a enunciação de valores liberais, mas o...

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